"Pequenas gotas caíam do céu. Ao início aleatoriamente, apenas ameaçando, intensificando-se depois. Maria sentada no alpendre lia um livro. Os finais da tarde em que o sol se começava a esconder por entre as nuvens eram os seus momentos preferidos. Olhou o céu outrora azul e solarengo, agora escuro e ameaçador. A chuva caía molhando o chão. O cheiro a chuva invadiu os seus sentidos. Observou os trausentes que corriam para se abrigar da chuva inesperada. Sentiu-se feliz por se encontrar em casa, no aconchego do seu lar. Havia algo de pitoresco na paisagem que via do seu alpendre, a produção visual, juntamente com o cheiro característico das primeiras chuvas deixaram-na extasiada. Descalçou-se, em pontas de pé caminhou para o meio da rua. Deixou que a chuva lhe caísse pelos cabelos, rosto... Em poucos segundos molhou-se por completo. Sorriu olhando o céu. Que diriam os vizinhos?
Recolheu-se em casa.Enxaguou o cabelo, despiu a roupa encharcada. Da janela continuou observando a chuva a cair lá fora, formando poças de água onde a terra se encontrava menos firme. Olhou o relógio da bisavó que repousava na lareira da sala. Ainda faltava bastante para o regresso do seu pai. Sentiu-se insegura. Um calafrio percorreu a sua espinha. Não era medo, desde bem pequena que desenvolvera as suas capacidades de independência, ficava sozinha em casa na ausência dos seus pais. Mesmo depois daquela fatídica noite não tinha medo de ficar só. Ela nunca se sentia só. Os seus amigos, os livros faziam-lhe companhia, riam com ela, choravam com ela. Com um livro na mão ela nunca se sentia só.
Mas hoje, hoje, com esta chuva inesperada sentiu a solidão a aproximar-se. Encolheu-se mais no sofá junto da janela. De livro no regaço tentava vislumbrar o carro do Pai a aproximar-se de casa. Um trovão ouviu-se por cima da casa. Assustou-se. A escuridão envolveu-a. Acabara de falhar a luz. "Fantástico!" - pensou - " Era só o que me faltava". Aninhou-se mais no sofá. Agora nem ler podia. Ouvia o a da tic-tac do velho relógio ecoando no silêncio que a rodeava. E se ligasse ao pai? Levantou-se dirigindo-se ao telefone. Mudo. Simplesmente mudo. "Oh e agora?" - e se fosse à vizinha? Olhou novamente lá para fora, chovia ainda mais.
Era noite de lua cheia, uma lua grande, redonda que projectava formas que a faziam imaginar histórias. Aninhou-se no sofá, cobertor no regaço. Com os olhos pousados na lua, teceu imagens, teceu sonhos, ela era feita da matéria dos sonhos. Seu Pai ria-se das histórias que lhe contava, seu Pai deliciava-se de a ouvir contar as peripécias das suas personagens. Quantas noites aninhados nos braços um do outro, em plenos momentos de partilha entre Pai e Filha, ela sussurrava as suas histórias aos ouvidos atentos dele. Seu Pai era seu porto seguro, sua âncora, o elemento que a tirava do mundo dos sonhos e fazia fincar os pés no chão. Seu Pai era seu mundo, pincelado de cores vivas, alegres, seu Pai era o riso estridente que ecoava pela casa mesmo quando o seu coração gritava de dor. E ela, ela era bem filha do seu Pai.
Olhou o relógio mais uma vez. O tempo passava velozmente. Quanto mais ele avançava, quanto mais os ponteiros dos relógios se moviam, mais a angústia lhe espremia o peito.
Aconchegou-se em posição fetal. Os olhos pesavam-lhe. Lutou para se manter acordada, mas era uma luta inglória. Acabou adormecendo. Não era um sono sossegado, era um sono envolto em sobressalto. Dormir sem estar a dormir. Olhos fechados, corpo pesado, mente inquieta.
O barulho de um carro aproximar-se acordou-a. Por momentos não sabia onde estava, por momentos sentiu-se perdida. Olhou pela janela, era o seu Pai. Suspirou aliviada. "Obrigada meu Deus por o trazeres são e salvo para mim! .
Esperou que ele abrisse o portão da garagem. Sorrateira esquivou-se para o seu quarto. Despiu-se à pressa, enfiou-se debaixo dos lençóis. Esperou quieta como um rato espera atento a movimentos súbitos. Escutou a chave a rodar na fechadura. Sentiu os passos ecoar na casa, ouviu as chaves serem pousadas na entrada. Esperou. Logo logo os passos de seu Pai ecoariam no corredor, apenas parando na entrada do seu quarto.
Sentiu a porta do seu quarto abrir, seu Pai acercar-se da sua cama. Sentiu seus lábios em seu rosto, suas mãos afagando seus cabelos. Estava finalmente em Paz. Em casa, com o seu Pai, o seu mundo estava por fim completo. Escutou mais uma vez a chuva lá fora. O som da chuva no telhado produzia uma melodia agradável, aconchegou-se mais, sendo embalada até finalmente adormecer."