Wednesday, December 8, 2010

O nosso Sol....

"Em cada história de vida por vezes se cruzam outras. Histórias que não são reais, histórias que sonhamos, que não vivemos, que desejamos. Até ao dia em que algo surge, a névoa que nos cobre o olhar se dissipa, julgamos ser o sol que espreita por entre as nuvens escuras. E ele vem. Esse sol, aquece-nos a alma, faz-nos levitar. Ignorámos por completo as nuvens negras que se acercam, só queremos saber do sol, do bem que nos faz, do quanto nos sentimos vivas, quentes. Mas as nuvens vão se acercando mais e mais, cobrindo o nosso sol tão radioso. O nosso olhar escurece, constatamos que afinal ele não é assim tão brilhante, apenas brilhou enquanto foi nosso desejo fazê-lo brilhar. Assim que o seu brilho diminuiu, conseguimos ver aquele brilho que nos ofuscou apenas impediu que víssemos o que havia para ver. A beleza anterior dá lugar a uma fealdade que julgamos impossível não termos visto antes. A ilusão vira desilusão, assim que se coloca a nu as imperfeições. Ignora-se os olhares de bem te avisei, finge-se não estar-se consciente do que foi inteiramente nossa culpa. Ajustamos o casaco em sinal de protecção contra o frio que sentimos, e vemos o nosso Sol brilhar noutro lugar. Restamos apenas nós e a escuridão." 


Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: Acontecimentos

Wednesday, November 3, 2010

Era transparente... diziam eles


"As pessoas diziam que ela era transparente. Não aquela transparência que nos remete para o invisível, mas aquela transparência que nos coloca a alma a nu. Julgavam conhecer o seu interior, a matéria de que era feita e ela apenas sorria. Oh que ingénuos todos eram. Não se apercebiam que debaixo daquela capa de uma transparência fina e ténue se escondia mais, muito mais. Segredos nunca revelados, desejos enraizados na alma, pudores nunca confessados. Se ela era transparente, os outros eram cegos, ou não quereriam ver que por debaixo daquele sorriso franco e espontâneo se escondia alguém dorido, magoado, fechado. Era tão fácil esconder as mágoas por detrás dos seus olhos grandes e castanhos, do seu sorriso rasgado, da sua alegria contagiante. Sentia-se um actriz num palco, recebendo os aplausos, os afagos que lhe dedicavam. Mas lá no silêncio da sua vida, quando despia a capa que adoptara, era só ela. Sózinha no seu mundo. Então aí sim era completamente transparente, já não tinha à sua frente o palco onde fingia ser uma pessoa que na realidade não era. Era transparente diziam eles, e não podiam estar mais enganados. Apenas mostramos aquilo que queremos verdadeiramente mostrar, e os outros eram tão fáceis de enganar..."

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: TRANSPARÊNCIA



Friday, October 1, 2010

E chove...


"Pequenas gotas caíam do céu. Ao início aleatoriamente, apenas ameaçando, intensificando-se depois. Maria sentada no alpendre lia um livro. Os finais da tarde em que o sol se começava a esconder por entre as nuvens eram os seus momentos preferidos. Olhou o céu outrora azul e solarengo, agora escuro e ameaçador. A chuva caía molhando o chão. O cheiro a chuva invadiu os seus sentidos. Observou os trausentes que corriam para se abrigar da chuva inesperada. Sentiu-se feliz por se encontrar em casa, no aconchego do seu lar. Havia algo de pitoresco na paisagem que via do seu alpendre, a produção visual, juntamente com o cheiro característico das primeiras chuvas deixaram-na extasiada. Descalçou-se, em pontas de pé caminhou para o meio da rua. Deixou que a chuva lhe caísse pelos cabelos, rosto... Em poucos segundos molhou-se por completo. Sorriu olhando o céu. Que diriam os vizinhos?
Recolheu-se em casa.Enxaguou o cabelo, despiu a roupa encharcada. Da janela continuou observando a chuva a cair lá fora, formando poças de água onde a terra se encontrava menos firme. Olhou o relógio da bisavó que repousava na lareira da sala. Ainda faltava bastante para o regresso do seu pai. Sentiu-se insegura. Um calafrio percorreu a sua espinha. Não era medo, desde bem pequena que desenvolvera as suas capacidades de independência, ficava sozinha em casa na ausência dos seus pais. Mesmo depois daquela fatídica noite não tinha medo de ficar só. Ela nunca se sentia só. Os seus amigos, os livros faziam-lhe companhia, riam com ela, choravam com ela. Com um livro na mão ela nunca se sentia só.
Mas hoje, hoje, com esta chuva inesperada sentiu a solidão a aproximar-se. Encolheu-se mais no sofá junto da janela. De livro no regaço tentava vislumbrar o carro do Pai a aproximar-se de casa. Um trovão ouviu-se por cima da casa. Assustou-se. A escuridão envolveu-a. Acabara de falhar a luz. "Fantástico!" - pensou - " Era só o que me faltava". Aninhou-se mais no sofá. Agora nem ler podia. Ouvia o a da tic-tac do velho relógio ecoando no silêncio que a rodeava. E se ligasse ao pai? Levantou-se dirigindo-se ao telefone. Mudo. Simplesmente mudo. "Oh e agora?" - e se fosse à vizinha? Olhou novamente lá para fora, chovia ainda mais.
Era noite de lua cheia, uma lua grande, redonda que projectava formas que a faziam imaginar histórias. Aninhou-se no sofá, cobertor no regaço. Com os olhos pousados na lua, teceu imagens, teceu sonhos, ela era feita da matéria dos sonhos. Seu Pai ria-se das histórias que lhe contava, seu Pai deliciava-se de a ouvir contar as peripécias das suas personagens. Quantas noites aninhados nos braços um do outro, em plenos momentos de partilha entre Pai e Filha, ela sussurrava as suas histórias aos ouvidos atentos dele. Seu Pai era seu porto seguro, sua âncora, o elemento que a tirava do mundo dos sonhos e fazia fincar os pés no chão. Seu Pai era seu mundo, pincelado de cores vivas, alegres, seu Pai era o riso estridente que ecoava pela casa mesmo quando o seu coração gritava de dor. E ela, ela era bem filha do seu Pai.
Olhou o relógio mais uma vez. O tempo passava velozmente. Quanto mais ele avançava, quanto mais os ponteiros dos relógios se moviam, mais a angústia lhe espremia o peito.
Aconchegou-se em posição fetal. Os olhos pesavam-lhe. Lutou para se manter acordada, mas era uma luta inglória. Acabou adormecendo. Não era um sono sossegado, era um sono envolto em sobressalto. Dormir sem estar a dormir. Olhos fechados, corpo pesado, mente inquieta.
O barulho de um carro aproximar-se acordou-a. Por momentos não sabia onde estava, por momentos sentiu-se perdida. Olhou pela janela, era o seu Pai. Suspirou aliviada. "Obrigada meu Deus por o trazeres são e salvo para mim! .
Esperou que ele abrisse o portão da garagem. Sorrateira esquivou-se para o seu quarto. Despiu-se à pressa, enfiou-se debaixo dos lençóis. Esperou quieta como um rato espera atento a movimentos súbitos. Escutou a chave a rodar na fechadura. Sentiu os passos ecoar na casa, ouviu as chaves serem pousadas na entrada. Esperou. Logo logo os passos de seu Pai ecoariam no corredor, apenas parando na entrada do seu quarto.
Sentiu a porta do seu quarto abrir, seu Pai acercar-se da sua cama. Sentiu seus lábios em seu rosto, suas mãos afagando seus cabelos. Estava finalmente em Paz. Em casa, com o seu Pai, o seu mundo estava por fim completo. Escutou mais uma vez a chuva lá fora. O som da chuva no telhado produzia uma melodia agradável, aconchegou-se mais, sendo embalada até finalmente adormecer."


Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: O CHEIRO DA CHUVA

Friday, August 6, 2010

Tempo do Adeus

 Vou de férias, deixo-vos mais um conto para vos deliciar na minha ausência, I will be back soon!




Adeus. Ela disse-lhe adeus. Em pontas dos pés beijou-o uma última vez. Ele olhava-a ternamente, segurou-lhe a mão, desejoso de não a largar mais.
- Não posso crer que vais mais uma vez embora. - seus olhos clementes que ela o ouvisse mais uma vez.
- Sabes que a minha vida é do outro lado do oceano. Já falámos sobre isto tantas vezes, eu não posso simplesmente virar costas.
- Porque não? O que tens a perder? - perguntou ele
- A minha independência, a minha carreira, a minha vida. Porque não vens tu comigo?
- Sabes que não posso, pelos mesmos motivos que tu.
- Então estamos conversados, nenhum de nós está em condição de abdicar, teremos que nos contentar com estes momentos fugazes em que somos tão felizes. Talvez a nossa receita seja esta, termos que estar separados para nos voltarmos a reencontrar. Vivemos de reencontros constantes.
Ele olhou-a, como amava aquela mulher. Seria capaz de viver mais dois meses ou mais separados? Ela acabou de se vestir, calçou os sapatos, deu um jeito no seu cabelo ondulado. Pegou na mala, atirou-lhe mais um beijo e saiu.
As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto enquanto descia as escadas a correr. Sinal de fraqueza, quase que cedera ao seu pedido, quase que abandonara tudo para ficar com ele. Quase. Olhou a praia em frente. Ainda tinha algum tempo antes do seu voo. Caminhou descalça pela areia, sapatos numa mão, mala na outra. Sentiu a areia molhada nos seus pés, a brisa marítima despenteava seus cabelos. Sentou-se. Ficou olhando o mar, uma sensação de tranquilidade invadiu-a. Pensou nele. No seu sorriso, no seu olhar, no seu toque, nos seus beijos. Como iria viver sem isso tudo? Cada vez custava mais a separação. Mais dois longos meses sem se verem. Vivendo apenas de telefonemas, mensagens, caricias virtuais que não os satisfaziam. Dois meses eram apenas cerca de 60 dias. Mas porque lhe parecia tanto? Porque lhe parecia um ano? A vida pregara-lhes a rasteira de os colocar frente a frente na pior fase de ambos. Aceitaram correr o risco, mas o risco agora estava a ser demasiado pesado, demasiado custoso. Suspirou.
Não estava praticamente ninguém na praia. Era ainda muito cedo. Um casal idoso, não tinham mais que 70 anos caminhavam pela areia fora de mão dada. Ficou a contemplá-los ao longe. Invadiu-a uma nostalgia, uma certeza que provavelmente não chegaria a esse patamar da vida com ele ao lado. Não a continuar a viver este amor pela metade. Encheu-se de coragem, pegou na mala e nos sapatos...
Entrou sorrateira em casa. Ele dormia. Despiu-se. Aconchegou seu corpo ao dele. Ele acordou sentindo a sua presença.
- Então de volta? - perguntou ensonado
- Ainda me queres? - perguntou enquanto lhe beijava os lábios
- Ainda perguntas? - sorriu-lhe
Abraçaram-se. Sem promessas, sem certezas, sem nada. Apenas ele e ela. E naquele momento só isso lhes bastava. Simplesmente porque às vezes custa demais dizer-se adeus. 

Autoria: Lcarmo (Poetic Girl)

Sunday, August 1, 2010

A última Viagem

 
 
Mais uma longa viagem. Mais dois dias em viagem da sua vida. Até quando iria viver mais entre as nuvens que com os pés na terra? Dobrou cuidadosamente a roupa enquanto a colocava na mala. Estava cansada dos voos intermináveis, das escalas constantes, do adormecer numa cidade e acordar noutra totalmente diferente. Estava a perder o crescimentos dos seus filhos, estava a perder o envelhecimento do seu marido.
Esta era a sua profissão, a sua carreia, o seu sonho? Mas quanto lhe estava a custar isto tudo? Viver a maior parte dos dias afastada de quem amava? Tinha sido aliciante nos seus tempos de solteira, em que viajar ainda a conseguia surpreender, em que vibrava com a chegada a uma cidade diferente. Agora todas essas emoções se evaporaram, deram lugar à angústia de ter que deixar os seus amores sem certezas do retorno. Já não se sentia segura na profissão, o medo de não ver crescer os seus meninos, não estar ao lado do marido a faziam estar mais consciente ainda dos riscos que corria diariamente. Valeria a pena?
Caminhou descalça até ao quarto das crianças, estas dormiam sossegadas. Beijou-os ternamente, ficando a olhá-los dormir. Dormiam descansados, ignorantes da angústia que toldava o coração da mãe. Uma profissão que lhe permitia dar-lhes tudo o que era material, mas os fazia ficarem privados da única coisa que mais lhes fazia falta: o seu amor. Agradecia o marido compreensivo e dedicado que tinha. Ele era pai, ele era mãe. Havia meses em que ela estava constantemente ausente. Pensou ironicamente que muitas mulheres se queixam da ausência dos maridos, neste caso era ela a ausente. Ainda tinha bem fresco na sua memória o último Natal que ficara retida num aeroporto em New York, sem possibilidades de retorno devido às más condições climatéricas, o que chorara naquela noite. O quanto eles deste lado do oceano a tentaram animar pela chamada de video-conferência, mesmo longe foi-lhe possível assistir ao momento de abertura dos presentes.
Retornou ao seu quarto para buscar a mala. Ficou olhando seu marido que dormia sossegado. Sentou-se na berma da cama. Não queria mesmo ir. Olhou para o telemóvel, e se ligasse a dizer que se sentia indisposta? E se não fosse? Hesitou uma vez, outra vez. Viu os minutos no visor a passarem cada vez mais rápido. Aproximava-se cada vez mais a hora de partida. Encostou seus lábios no seu marido, beijando-o levemente. Vestiu o casaco, pegou na mala, estava pronta para sair.
Sentiu o telemóvel a vibrar no bolso. Olhou para o visor, era da companhia.
- Helena, já vens a caminho? - perguntou a operadora
- Não ainda estou em casa, ia sair agora.
- Houve um problema a nível das escalas de serviço, afinal não estás destacada para viajares hoje. Desculpa o transtorno mas houve um lapso no sistema.
- Ah... bem nem sabes como fico feliz com essa noticia, estava a custar-me imenso sair de casa hoje.
- Já não precisas. Volta para a cama, agora só entras a serviço próxima terça feira. Até  lá!
Desligou. Sentia-se deveras aliviada. Despiu-se e enfiou-se na cama ao lado do marido. Adormeceu.
No dia seguinte seu marido acordou-a bruscamente.
- Helena acorda! - chamou-a
- Hmmm? Que se passa? - perguntou ensonada
- Não ias fazer o voo para os estados Unidos?
- Sim ia mas ligaram-me a dizer que tinha sido engano nas escalas e eu não estava destacada.
- Acabei de ver nas noticias, houve um acidente. Várias mortes... - seu marido olhava-a emocionado
- O voo? O meu voo? - perguntou enquanto uma sensação de pânico a invadia
- Sim querida, sim! Quis o destino que não estivesses lá dentro, sabe-se lá o que te podia ter acontecido.
- Meu Deus! - começou a tremer involuntariamente. Estava em choque! Lembrou-se da sua angústia na noite anterior, lembrou-se do seu receio em ir. Lembrou-se do alívio que sentira por não estar destacada.
Deixou que seu marido a tomasse nos seus braços, enquanto chorava. Chorava pela ironia do destino que a poupara a uma eminente morte, mas colocara outra pessoa em seu lugar. Pensou na crueldade em que põe e dispõe de vidas, que não passámos todos de bonecos à disposição do destino....

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: UMA LONGA VIAGEM

Thursday, July 29, 2010

Flores no Cabelo



Ele passava por ela todos os dias. Ela vivia indiferente à sua presença. Todos os dias ela caminhava acelerada calçada fora, sempre olhando o relógio demonstrando que estava atrasada. Todos os dias ele esperava por ela, debaixo do toldo do café da esquina. Seu coração batia mais forte quando a avistava no inicio da rua. Passo apressado, sempre bem arranjada, telemóvel na mão, cabelo solto ao vento, seus caracóis caíam em grandes cachos ao redor do seu rosto. Nos seus caracóis o pormenor que mais o deliciava, as flores no cabelo. Pequenas, discretas tal como ela. Mas no seu todo produziam um efeito visual magnífico.
Ela passava por ele, nunca o via. Ou se via fingia não ver. Nunca os olhares se cruzaram, nunca por momento algum ela pareceu vê-lo dia após dia à sua espera. Um dia trouxera-lhe uma flor, ficou ali de flor na mão à sua espera. Mas nesse dia ela não viera. E ele ficou triste. Caminhou cabisbaixo até ao escritório, subiu as escadas. O mesmo frenesim de sempre o envolvia, pessoas a correr de um lado para o outro. Olhou para a secretária dela. Ela já lá estava, ficou surpreso. Dirigiu-se à sua própria secretária, a flor ainda na sua mão.
- Vens tarde hoje - comentou ela
Olhou-a estupefacto. Nunca trocaram uma palavra, ele pensava que ela nem sabia da sua existência.
- Hmmm - balbuciou... não conseguindo estruturar uma frase.
- Não te vi hoje na esquina. - comentou enquanto lhe piscava o olho - Que linda flor é para mim?
Ele olhou-a bem fundo nos olhos. Num gesto de atrevimento aproximou-se, pegou no gancho que lhe segurava uma madeixa de cabelo e prendeu lá a sua flor.
- Fica-te muito melhor uma flor natural! - disse ele ao mesmo tempo que soltava o caracol que segurava entre os dedos. - Porque nunca falas-te comigo antes?
- Porque só hoje quando passei por aquela esquina e não te vi lá, me apercebi que me fazias falta. A tua presença diária dá-me segurança, o teu olhar coragem. E aquela esquina nunca me pareceu tão triste como hoje, sem tu ali.
- Mas tu nem me vias. Passavas por mim e nem um bom dia.
- Ah mas eu via, vi-te todos os dias que esperavas por mim. Vi-te nos dias de sol, vi-te nos dias de chuva. Mas não te vi hoje. Onde estavas?
- Mas eu estive lá, como sempre à mesma hora.
Olhou para o relógio nervoso, que teria acontecido? Ele não se atrasara. Corou, sentindo-se envergonhado: - Esqueceu-me que mudava a hora! - confessou
Riram-se os dois. Ela convidou-o para um café, ele aceitou. Juntos desceram ao café da esquina.

Thursday, July 15, 2010

Momento: a duas vozes (parte XXV)

ELE

Um súbito telefonema de Ana deixou-me angustiado. A sua saúde já fragilizada com a perda da filha começava a piorar. A doença que julgáramos vencida estava agora em vias de voltar a atormentar-nos. Logo que me foi possível arranquei para casa dela. Sofia estava comigo. Incrível a capacidade que as crianças têm de se abstrair do que as rodeia, era como se a minha filha vivesse num mundo apenas dela, inconsciente do que se passava à sua volta. De certa forma era um alívio para mim. Se fosse porventura mais velha, faria com certeza mais perguntas, não entenderia porque a avó não queria brincar com ela, porque os seus olhos estavam negros e sem vida.
Sentei-me no sofá ao seu lado. No espaço de uma semana a mulher que eu sempre conhecera como forte, parecia um trapo velho amarrotado. Segurei-lhe a mão com carinho. Sofia no meu colo tentava a todo custo saltar para o colo da avó, repreendia. Fez beicinho como só ela sabia fazer.
- Deixa-a estar, anda à avó querida... - deixei-a deitar-se ao seu lado. Encostou a cabeça em seu peito, seus dedinhos desalinhando o cabelo da avó. Senti um ligeiro aperto no peito por presenciar aquela cena. Dei comigo a pensar que seria injusto para a minha filha mais alguém lhe ser roubado. Era uma probabilidade. Ana sabia que se eventualmente a doença reaparecesse não teria condição física de a combater, escapara à uma década atrás e dizia ser uma grande felizarda por isso. Na sua curta vida  Sofia já sofrera a perda da mãe, de Marylin e agora da avó. Eram demasiadas perdas.
- Como se sente hoje? - perguntei-lhe
- Cansada... apenas cansada. Sabes Helder eu sempre estive à espera deste momento, nunca me convenci que iria sair completamente vencedora. Agora percebo que a doença entrou em remissão sim, mas porque eu tinha ainda algo a cumprir aqui na terra antes de partir. Eu tinha que estar ao lado dos últimos dias da minha filha, ver os primeiros passos da minha neta. Agora que a minha filha já partiu, a minha neta já não precisa tanto de mim, a minha doença resolveu reaparecer. Como se tivesse cumprido a minha meta aqui na terra.
- Ana, não diga uma coisa dessas. Vamos lutar, vamos fazer o que for possível para a ajudar. A medicina hoje em dia..
- Ah Helder eu não sei se tenho forças para lutar. Tu ainda não estavas na nossa vida quando passei a primeira vez por isto, não sabes o que dói veres o teu marido, filha a sofrer por te ver sofrer. Não sei se quero viver isso outra vez, não sei se quero.
- Mas tem o seu marido, neta, eles precisam de si... - argumentei eu - eu preciso de si!
- Meu querido tudo nesta vida passa, dói, mas a vida continua. E vocês poderão continuar com a vossa vida mesmo depois de eu partir.Chama-se lei da vida, por mais injusta que possa parecer.
Olhei-a nos olhos. Falava com convicção, mais emocional que racional. Olhei a minha menina que entretanto adormecera nos braços da avó. Estaria a vida a brincar comigo, um constante dá e tira? Um barulho chamou a minha atenção, Pedro chamava-me da entrada da porta. Levantei-me, deixei-as sós.
Estava com um olhar triste, ausente, seu cabelo em desalinho, expressão ausente, de quem não pregava olho desde que soubera a noticia. Sentamos no alpendre cá fora alheios à beleza que nos rodeava. O sol desaparecia por detrás da montanha, pincelando o céu de cores lindas. Em silêncio partilhámos aqueles momentos em que apenas o som da natureza ecoava em nós.
- Duro golpe hem? - iniciou ele a conversa
- Sim, não estávamos mesmo à espera. Que disse o médico em concreto? - perguntei-lhe
- Oh disse aquilo que não queríamos ouvir, que andámos a ignorar. Que reapareceu o tumor, que seria difícil de operar novamente. Aquelas conversas de médico quando sabe que não à mais nada a fazer. Ana recusa qualquer tipo de tratamento que acelere a sua partida ou diminua a sua qualidade de vida. Um amigo médico falou-me numa clínica em Londres onde costumam operar casos destes com êxito. Estou disposto a desfazer-me de tudo, desta casa, do que for necessário para tentar, mas ela não quer.
- Vai ver que ela vai acabar por ceder, vai ver que sim.
- Espero bem que sim Helder, não queria perder a minha mulher desta forma, não para este monstro que já a tentou levar uma vez....
Dei-lhe uma palmada no ombro em jeito de alento, em jeito de coragem. Olhámos ambos para o firmamento incertos do que nos esperava a seguir.

Autoria: Lcarmo (Bela)
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Friday, July 9, 2010

Nas minhas mãos


"Peguei nele com cuidado. Maltratado e ferido, tal era o estado em que se encontrava. Com cuidado para não o magoar, desinfectei-lhe as feridas. Algumas eram feias e profundas. Havia algumas bem antigas, outras notavam-se ser recentes. Preocupou-me as mais recentes, pois ainda estavam frescas, ainda se notava que estavam expostas. Eram as que lhe doíam mais. Peguei nele nas minhas mãos, amparei-o. Falei com ele, expliquei-lhe que era inevitável as dores que sentia, que iria minimizar a sua dor o melhor possível. Parecia pequeno e frágil por fora. Mas por dentro eu sabia-o ser grande e forte. Apesar da facilidade com que abria feridas, não tinha noção por vezes da sua capacidade de se regenerar. Seus batimentos eram pausados, quase inaudíveis. Parei para escutar. Acaricei-o com gestos delicados, a sua fragilidade, a sua mágoa ali latente. Tentava ocultar a sua dor,  apesar da aparente jovialidade, se os outros olhassem bem para o fundo do seu ser veriam a mágoa que o consumia, que o desgastava. Fiquei ali com ele nas minhas mãos. Ainda o tenho nas minhas mãos, o meu Coração " Bela

Thursday, July 1, 2010

Uma noite...

Era uma noite escura. A rua encontrava-se silenciosa. Toda a gente já se recolhera nas suas casas. João caminhava sem rumo, aconchegou mais o casaco junto a si, sentia frio. Olhou em volta, procurando um lugar que lhe servisse de abrigo. O vento soprava forte fazendo-o aconchegar ainda mais o casaco  já velho e roto. De um eco ponto retirou um pedaço de cartão suficiente para lhe servir de colchão. Uma saliência no beco pareceu-lhe ser o local mais abrigado para poder dormir umas horas; horas suficientes até ao novo raiar do dia, até mais um dia na sua vida. A vergonha obrigava-o a viver assim na penumbra, escondendo-se dos outros. Deitava-se quando os outros já dormiam, levantava-se antes dos outros acordar. Assim ia "sobrevivendo", garantindo a sua subsistência com a mísera pensão de invalidez que recebia. Aconchegou-se em posição fetal adormeceu . A noite estava demasiado silenciosa como que antecipando um qualquer acontecimento fatídico.

O silêncio da noite foi quebrado pelo som de um disparo seguido de um grito estridente. Acordou sobressaltado tocando em todo o seu corpo com receio de ser sido alvo desse mesmo disparo. Não. Estava tudo bem consigo. Levantou-se. Os vizinhos começaram a assomar às janelas. Os gritos iam-se tornando cada vez mais próximos. Enchendo-se de coragem avançou tacteando no escuro. O seu coração batia descompassadamente. Os barulhos vinham do outro lado do prédio. Contornou a esquina camuflando-se na escuridão que envolvia o prédio. Espreitou.

O cenário era: um carro com as portas completamente abertas, uma jovem em lágrimas encolhida à mercê de um individuo na posse de uma arma de fogo. O individuo ameaçava-a, gritando. João olhou à sua volta, esperando que algum dos vizinhos que espreitavam por detrás das cortinas fizesse algo. A passividade de quem estava protegido no calor do lar tornava-os imunes ao que se passava na rua . Espectadores passivos da desgraça alheia. Olhou ao seu redor procurando algo que lhe pudesse servir de arma. Uma tábua de madeira largada no chão pareceu-lhe servir o seu propósito. Avançou por detrás do agressor. A jovem viu-o aproximar-se, seus olhares se cruzaram, ele silenciou-a com o olhar, evitando que ela denunciasse a sua presença. Pé ante pé avançou até estar próximo do homem que continuava a gritar com a jovem, ela cada vez se encolhia mais arrastando-se pelo chão. O cenário era horrível. O homem balbuciava palavras sem nexo, acusando-a de alguma coisa que João não entendia. Deviam viajar juntos no carro quando por qualquer motivo algo despoletou a fúria no homem. Uma relação passional? Mas ele parecia tão mais velho que ela.

Um gato atravessou o local a correr assustando os invervenientes na história. João deu um salto, largando a tábua que caiu ao chão causando um som estridente. O agressor voltou-se, ambos se olharam. Um arrepio percorreu João. A arma disparou atingindo-o no ombro. Caiu para o chão dando um grito de dor que ecoou na noite.
- "Que fizeste tu?" - gritou a rapariga correndo em auxilio de João
- "A culpa é tua, toda tua!" - gritava o marmanjo enquanto andava em círculos
- "Que vamos fazer agora? Precisamos de chamar uma ambulância! Liga para a emergência!"
- "Eu? Eu é que vou ligar? Eu vou é embora daqui!" - atirando a arma para um canto, entrou no carro e fugiu.
João e a jovem ficaram sozinhos. Ela chorava. Ele sentia guinadas de dores alucinantes.
- "Que vamos fazer? Oh que vou fazer?" - balbuciava ela enquanto olhava em volta
- "Vai ter que chamar alguém, por favor não me deixe aqui". - pediu ele.
Ela levantou-se, correndo para o prédio mais próximo tocando em todas as campainhas. Ninguém respondia. Insistiu mais uma vez. Ouviu-se uma voz pelo intercomunicador a perguntar o que queria.
- "Por favor, chame uma ambulância, é urgente, está uma vida em risco!".
- "Vou chamar, não saia daí que vou chamar".
A jovem foi para o lado de João. Ambos ficaram lado a lado até a ambulância chegar. Os paramédicos prestaram os primeiros socorros, precisava de seguir para um hospital. Colocaram-no dentro da ambulância, a jovem seguindo-os.
- "Posso ir consigo?" - perguntou ao João - "Não tenho para onde ir."
João aquiesceu. Em silêncio foram conduzidos pela cidade, a sirene da ambulância ecoando na noite. 

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: DISPAROU


Friday, June 25, 2010

Momento: a duas vozes (parte XXIV)

ELA

O trabalho acabou por me absorver por completo. Nele canalizei todas as minhas forças, todo o meu ser. Os meus dias de trabalho eram longos, bem longos, por mais de doze horas exercia a função que me tinha sido destinada. Miguel trabalhava tão ou mais que eu. Havia dias que nem nos cruzávamos em casa, trocando meras palavras durante o dia. Ambos tínhamos a nosso cargo uma grande responsabilidade, eu sentia-me ainda mais obrigada a sair vencedora para não frustrar as expectativas que tinham sobre mim.
Aproveitávamos o fim de semana para conhecer a cidade, passear, jantar fora. Ele acabou se revelando uma boa companhia. A sua presença não tinha qualquer efeito em mim, olhava para ele e não o via como homem, era um bom amigo acima de tudo, meu superior hierárquico por outro lado.
Continuava a pensar em Helder, a respirar Helder. Não mais tivera noticias dele. Pensava muitas vezes onde estaria, que estaria a fazer, se pensaria em mim. Estranhava o silêncio. Mas a verdade é que não conseguia reunir coragem suficiente para pegar no telefone, havia sempre alguma coisa que me impelia a não fazê-lo. A angústia essa andava sempre latente dentro de mim, uma sensação de asfixia, de viver sem estar vivendo. Por vezes se não fosse a insistência de Miguel haveria com certeza muitos fins de semana que nem sairia do quarto. Deixava-me levar pela sua alegria, jovialidade. A verdade é que eu precisava dele para me distrair, para me esquecer do que havia deixado para trás. Tenho consciência que o estava a usar, para preencher um vazio, para me distrair da minha dor. Simplesmente não o conseguia evitar, era mais forte que eu.
Sempre fui uma pessoa que tem necessidade de estar acompanhada, a solidão faz-me mal, a sensação que o meu tempo é desperdiçado aterroriza-me. Os únicos momentos em que concebia e concebo estar só é quando estou concentrada numa leitura, caso contrário tenho que ter gente por perto. Este medo da solidão vem de desde muito nova. Apesar de ser filha única, cresci rodeada de gente. Cresci na quinta do meu avô, meus pais viajavam constantemente, deixando-me por tempos indeterminados ao cargo dos avós. Meu avô era um criador de cavalos, pessoa generosa, amiga dos animais e das gentes. Com ele aprendi os valores essenciais para crescer consciente dos meus actos, com ele aprendi a amar os animais, com ele aprendi o que era o Amor. Sendo neta primogénita era a preferida dele, a que ele escolhia para sentar no seu colo quando me contava histórias dos seus tempos de adolescente. Era a única que nutria o mesmo amor pela natureza, a única que o acompanhava nas lides. Tenho memórias de mim, meio palmo de gente, calçada com botas de montar demasiado grandes para mim, carregando os baldes com a ração dos animais. Que doces memórias essas.
Meu avô não gostava do meu Pai. O meu Pai não tolerava o meu avô. E a minha mãe, a minha mãe não era capaz de tomar um partido. Dividia-se entre os dois, evitando ao máximo que eles passassem mais do que o tempo necessário juntos. Daí as constantes viagens sem mim. E eu cresci a amar mais o meu avô do que o meu próprio pai. A sua presença aterrorizava-me, meu semblante sempre ficava mais carregado na sua presença. Conforme fui crescendo, o tempo que passava em companhia do meu avô era superior ao tempo que passava com meu pai. A quinta localizava-se no Norte Transmontano, longe da cidade onde sempre vivemos. Como os meus pais me começaram a deixar ficar por tempos inderteminados, meu avô obrigou a minha mãe a inscrever-me lá na escola. E foi ali que passei a minha infância, naquela terra maravilhosa, rodeada de montes e vales. Com a morte do meu avô, veio a obrigatoriedade de regressar à cidade. Tinha eu 12 anos, idade em que já era difícil me conseguirem voltar a moldar, foi aí que começaram os problemas com o meu Pai. Ele não entendia porque eu não lhe obedecia, eu gritava que o destestava, que queria fugir de casa. As alturas em que ele estava em casa, eram terríveis para mim. Não havia forma de entendimento entre nós. Viver naquela casa era um inferno. Os melhores momentos eram os passados sozinha com a minha mãe, em que nos agarrávamos as duas sozinhas a chorar, ela com medo de tomar uma atitude, eu de saber que estavamos ambas condenadas a viver num inferno. Felizmente a profissão do meu Pai obrigava-o a passar vários meses fora de casa, servindo isso como meio de aproximação entre mim e a minha mãe. Aos poucos fomos construindo uma amizade que nos tinha sido roubada, soube por ela que sofria todos os dias com a nossa separação. Questionei-a porque me deixou aos cuidados do meu avô. E ela respondeu-me da forma mais sincera possível que não queria que eu vivesse num inferno. Nunca consegui entender porque ela não deixou o meu Pai mais cedo. O que a levou a aguentar anos e anos de maus tratos. Nem me cabe agora julgá-la. Não estaria ela agora a sofrer as consequências de tudo o que "engoliu" durante anos e anos? O nosso terror apenas terminou quando o meu Pai reconstruiu outra família, deixando-nos entregues a nós mesmas. Retirando-nos o pouco que tínhamos. De um dia para o outro vimo-nos ambas no meio da rua, sem lugar para viver. Agora já não havia avô para onde fugir. Agora já não havia quinta no Nordeste Transmonstano. Agora já não havia família mais nenhuma, separados pela inveja, pelas partilhas que sempre acabam separando as pessoas, terrível ganância que transformas as gentes.
Uma vizinha acolheu-nos por alguns dias. Conseguimos arranjar uma instituição que nos acolheu e onde passamos a viver as duas. Eu cresci dentro daquelas paredes, ajudando a minha mãe nas tarefas que lhe era destinadas em troca de comida. Foram tempo difíceis, mas felizes! Até a doença da minha mãe começar a dar os seus primeiros sinais, no inicio parecendo que era apenas uma simples tristeza, desmotivação, mas que se veio a revelar nunca mais passar. Foi assim que começaram os tratamentos, internamentos, até chegar à situação actual. Eu agarrando-me às forças que tinha, fui fazer a única coisa que podia fazer, trabalhar, estudar. Foram anos e anos de sacrifício, de luta, para chegar onde estava hoje.

Da janela deste quarto ao olhar para a rua movimentada lá em baixo, senti o coração apertado de saudades da minha Mãe.

Autoria: Lcarmo (Bela)
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P.S. Não se esqueçam do desafio que lancei neste post
TEMA: Poesia
Prazo das participações: Todo o mês de Junho
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Resultados serão anunciados a 17 de Julho

Thursday, June 17, 2010

Continuar a história...

"Ela levanta-se, estranhando a sua própria audácia. Senta-se ao seu lado, sua mão pousa delicademente na dele. Ele pára de tocar, olham-se. Com gentileza ele coloca a sua mão por cima da dela, condu-la, convida-a a ela própria acariciar as teclas do piano. O calor que emana da mão dele na sua fá-la estremer. Sente-se ruborescer ligeiramente, tal a intensidade dos olhos dele no seu rosto, na sua pele, queimando-a, deixando-a a tremer. Num impulso, com a mão livre acaricia o seu rosto, ele inclina ligeiramente o rosto em sinal de concordância, sentiu a barba dele sob os seus dedos, teceu o contorno dos lábios. Ele esboça um sorriso. Ela apenas o contempla. O som do piano continua a ecoar na sala, em uníssono com o bater dos dois corações, num compasso idílico...."

Continuação da história do Blog da Patti, Ares da Minha Graça
Autoria: Lcarmo (Bela)

P.S. Não se esqueçam do desafio que lancei neste post , continuo à espera das vossas participações!
TEMA: Poesia
Prazo das participações: Todo o mês de Junho
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Monday, June 14, 2010

Podia ser o começo de uma história

"Naquele estado permanente de insónia, senta-se no parapeito e fica à escuta. A sua mente vagueia sem destino, inevitavelmente recaíndo sempre no autor daqueles sons dispersos na noite. Quem seria? Como seria? Seriam seus dedos longos? Estremeceu ao imaginar as mãos que tocariam neste momento as teclas do piano, acariciando-as, fazendo-as gemer ao passar do seu toque. Só poderia estar louca em imaginar cenários "sensuais" com alguém que nunca vira. O silêncio da noite constrastava com os acordes que ouvia. Havia algo de sedutor na forma como a música invadia seus ouvidos. Ficavam assim horas, ele a tocar, ela a escutar. E quanto finalmente ele dava por terminado a sessão musical, ela continuava sentada na sua janela, a música ainda ecoando em seus ouvidos..."

Autoria: Lcarmo (Bela)


Continuação da história do Blog da Patti, Ares da Minha Graça

Tuesday, June 1, 2010

Estava Vazio....


"Ao colocar a chave na porta estremeceu ligeiramente. Entreabriu-a , ficou a olhar o corredor escuro. Estava relutante em acender a luz, tacteou no escuro com receio de tropeçar em alguma coisa. Sentia-se apreensiva, o receio que lhe ocupara a mente o dia todo parecera ter-se realizado. Caminhou em direcção ao quarto, procurou o interruptor, ligando a luz ficou a contemplar o quarto. A cama ainda se encontrava por fazer, as almofadas jogadas no chão. Esperava encontrá-lo à espera dela, mas ele não estava.
A discussão de ontem ainda lhe latejava nos ouvidos, a cena ainda decorria perante o seu olhar. Ela a chorar, ele a agarrá-la pelos ombros abanando-a, querendo à força que ela parasse o choro. Mas ela não conseguira, ele atirara-a para a cama, dissera-lhe coisas horríveis. E mais uma vez ela ouvira e calara. Despiu o casaco, descalçou os sapatos e deitou-se na cama em posição fetal. Sentiu o cheiro da mistura do seu perfume e o suor de ambos impregnado nos lençóis. Escondeu a cara na almofada para absorver o cheiro uma vez mais. Deixou-se estar ali à espera de ouvir a chave na porta. Já eram horas de ele estar em casa. Teria acontecido alguma coisa? A apreensão tomou conta de si, num impulso procurou o telefone para lhe perguntar onde estava. Tocou, tocou, tocou e ele não atendeu. Seu olhar percorreu os objectos espalhados pelas mesas do quarto, pelo chão. Algo chamou a sua atenção. Levantou-se em direcção à cómoda. Estranhou a falta de alguns objectos. Tinha a certeza que a cómoda tinha mais objectos, ela no seu modo de ser cuidado, certeiro arranjara os objectos pessoais de cada um de forma a que não se misturassem. Neste momento alinhados em cima do tampo da cómoda apenas se encontravam os seus. Um grito abafado a percorreu. Correu para o guarda-fatos abrindo-o de par em par.
Seu olhar constatou o seu pior receio, as roupas dele não mais se encontravam ali. Espreitou debaixo da cama procurando a mala que lhe oferecera, também ela já não estava mais onde era suposto estar. Sentou-se na cama sem forças para reagir, ficou a olhar o guarda - fatos que estava vazio dos objectos dele. Nada ficara. Seu coração pesou-lhe dentro do peito. Também seu coração se esvaziara. Agora para além de um guarda-fatos vazio, ela estava vazia do amor dele. Covardemente ele saíra da vida dela, sem uma despedida, sem uma palavra de conforto. Ela nunca lhe pediria para ficar. Nunca. A relação chegara ao ponto do não retorno, ela sabia, ela sentira na sua pele na última vez que fizeram amor. O elo quebrara-se, o companheirismo cedera lugar às discussões, às acusações mudas, aos carinhos que não mais trocavam.
Seu coração estava agora mais leve, vazio,mas leve. Enxugando as lágrimas levantou-se, olhou uma vez mais o guarda-fatos vazio. Procurou debaixo da cama a sua mala onde guardara alguma roupa sua para arranjar lugar para a roupa dele. Abriu-a. Em questão de minutos voltou a encher o guarda-fatos mas desta vez apenas com a sua roupa. "Se fosse tão fácil voltar a encher o meu coração como voltei a encher este guarda-fatos" pensou. E sentiu um calor a aflorar-lhe a pele, um sorriso tímido brindou-a. Sim seria capaz de o fazer. E estando disposta a isso, sentiu seu coração se encher de esperança.
Não ia ser fácil, mas entre um guarda-fatos vazio ou um coração vazio, ela preferia ter o guarda-fatos e a cama vazia. "


Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: Estava vazio

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TEMA: Poesia
Prazo das participações: Todo o mês de Junho
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Monday, May 24, 2010

Momento: a duas vozes (parte XXIII)


 imagem daqui


"Ele

Fiquei à espera de uma resposta de Marylin. Nada. Apenas silêncio. Questionava-me se devia ligar-lhe ou não, mas tal como já compreenderam um dos meus terríveis defeitos era mesmo o de ser orgulhoso. E o meu orgulho estava ferido irremediavalmente. Sentia que tinha feito figura de idiota, e não gostava nada da sensação que isso me provocava.
O tempo foi passando e a vida entrando nos eixos. Um mês sucedeu ao outro. Embrenhei-me no trabalho e na vida que estava a construir para a minha filha. Ambos estávamos em fase de adaptação, o período de aproximação inicial tinha terminado, já conseguia que ela agisse espontâneamente comigo tal como fazia com os avós. Muda-mos de casa, comprei um apartamento maior, com mais conforto para criar a menina. Aos poucos ela foi ficando um dia, mais um dia, até que já ficava a semana inteira comigo. Claro sempre com a presença dos avós, que eu muito apreciava. Pois graças a eles, era-me permitido ainda ter aqueles momentos de liberdade em que saía para beber um copo com os amigos, ou simplesmente me reencontrar a mim mesmo. Sentia muitas saudades de Marylin, embora a angústia que sentira anteriormente aquando a separação se começava a dissipar. Acho que me tinha conformado com o facto de que ela escolhera uma outra vida para ela. E eu só tinha que respeitar.
            Conhecera entretanto uma mulher. Uma outra mulher que demonstrava interesse em mim. Travalhavámos juntos. Saímos algumas vezes, mas nunca se passou nada, éramos apenas boa companhia um para o outro. Eu não estava preparado para abrir a porta do meu coração a alguém tão cedo. Ana olhava-me de soslaio sempre que lhe pedia para ficar com a menina à noite, mas senti-a respirar de alívio quando me via regressar cedo para a vir buscar, sinal de que não passara a noite com alguém. Ana não falava, mas era fiel à Marylin. Acho que no fundo acalentava ainda a ideia de que pudéssemos nos acertar novamente num futuro próximo. O mesmo já não podia dizer de mim. Começava a erguer à minha volta uma barreira que eu sentia fisicamente a crescer de dia para dia. Nada despertava em mim o mínimo prazer. A mínima emoção. A não ser a minha filha. No que a ela dizia respeito eu era um pai super dedicado. Tínhamos a nossa rotina instalada, levava-a ao colégio de manhã, sendo responsabilidade dos avós irem buscá-la ao fim da tarde. Mal terminasse o meu dia de trabalho, ia buscá-la, jantávamos os quatro todos juntos, depois eu e Sofia seguíamos para casa. No inicio foi extremamente difícil nos adaptarmos-nos um ao outro. O criar tarefas e rotinas que nos permitissem estar em sintonia. Os banhos. As birras. O vestir. O despir. Era um sem fim de coisas que eu tinha que fazer antes de me deitar, que assim que o fazia adormecia logo de cansaço. Mas estava a adorar esta nova etapa da minha vida, em que dia após dia aprendia a amar ainda mais a minha filha. "
 
Autoria: Lcarmo (Bela)
 
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Friday, May 21, 2010

Caminho


imagem daqui

"Estou neste cruzamento a que chamam vida. À minha frente vejo uma infinidade de caminhos que se cruzam e descruzam. Pondero qual devo tomar, qual dos caminhos me levará até ti? Avanço céptica, carente da tua ausência, se ao menos me desses um sinal, me indicasses qual o caminho mais curto para poder chegar até ti. Esta incerteza de não saber o caminho a tomar, é sedutora em muitas formas, mas hoje, depois de tantos caminhos que só me afastaram cada vez mais de ti, está aos poucos a perder-se essa ilusão. Já experimentei virar á esquerda, já virei á direita, já segui em frente, já retrocedi. E nem um vislumbre de ti. Imagino teu sorriso, a observar este meu caminho errante, gostas de te fazer de difícil é? Sabes seria tão mais fácil se também tu pusesses pés ao caminho, viesses ao meu encontro. Estou cansada de tomar os caminhos errados, sinto-me desolada quando chego ao fim e não te encontro, ou encontro sósias de ti. Sei que existes, meu coração me diz que sim. Mas porque é tão difícil? Hoje estou aqui prostrada mais uma vez neste cruzamento. Olho para um lado, olho para o outro. Procuro os sinais que me indiquem em que ponto te encontras, tento que a brisa me conduza, espero que o sol ilumine meu caminho. Procuro nos sinais da natureza a indicação do caminho a seguir. O coelho que escolhe o caminho da direita, o passarinho que voa em direcção oposta. Estou confusa nem a natureza é minha aliada nesta minha busca. Hoje apetece-me desistir de te procurar. Faço birra tal e qual uma criança mimada, choro lágrimas de frustração por me sentir cada vez mais longe. Hoje sento-me aqui neste cruzamento, com todos os caminhos em aberto. Hoje pela primeira vez em muito tempo não encontro a firmeza necessária para escolher por onde seguir. Hoje só queria que escolhessem o caminho para mim, não ter que ser eu a tomar a opção errada que mais uma vez me afastará de ti. Mas será que afasta mesmo? Oh incerteza cruel de saber o que nos espera não é? Mas se realmente soubéssemos o que nos espera no fim de cada caminho que traçamos, será que os faríamos com a mesma garra, a mesma vontade? Provavelmente não. A procura pelo caminho que me levará até ti, é a chama que me mantém agarrada a vida, é a força que finca meus pés, diminui o cansaço das minhas pernas quando elas se recusam a andar. Paro, escuto, avanço. Sem medos, Sem reservas. Afastando de mim a vontade de desistir de te procurar, abafando as vozes que me dizem que essa procura não me leva a lugar algum, que o que é meu virá ter comigo. Mas não sei ser paciente. Não sei esperar que chegues até mim. E se não me encontras? E se o teu caminho se desvia do meu, por qualquer casualidade da vida? Não. Tenho que ser eu a desvendar qual o caminho certo a percorrer. qual o ponto da vida em que terei que virar, em que tirei que seguir em frente. Certa de que no fim desse caminho que escolhi estarás tu, de braços abertos, para me acolheres em teus braços, afagar meu cabelo, beijar meus lábios. Sei que vais estar, sinto isso, por isso só te peço, espera por mim, SIM? "


Autoria: Poetic Girl
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Participação especial para o Blog "Caminhos da Camila" sobre o tema "CAMINHOS"

Friday, May 14, 2010

Um desafio


"No meu outro Blog mais generalista está a decorrer neste momento um desafio. Gostaria de convidar os leitores deste cantinho aqui a participar, afinal de contas eu sou a mesma pessoa e serão muito bem-vindos por lá também. Quem estiver interessado em saber mais é só clicar AQUI. 
Fico à espera das vossas participações. O tema é a POESIA  e as participações terão que ser enviadas para o meu email durante o mês de Junho, o vencedor será anunciado em Julho. Bela"

Sunday, May 9, 2010

Momento: a duas vozes (parte XXII)


ELA

"A viagem correu bem. Sem percalços. Consegui dormir, aliás forcei-me a dormir para não ter que travar conversa com o Miguel que se acomodou logo ao meu lado. Quando o avião descolou, da janela vislumbrei o meu belo Porto que deixava para trás, tomei consciência nessa altura que sim que agora era a sério. Eu não estava a sonhar, ia mesmo para Londres, iniciar um novo projecto profissional, projecto esse que sempre desejara mas agora não era a prioridade na minha vida. Encostei minha cabeça na janela, tentei acomodar-me o melhor possível de forma a evitar qualquer contacto físico com Miguel, e adormeci. Quando acordei já estávamos a sobrevoar Londres, o avião iniciava então a descida. Miguel dormia também. Olhei-o de soslaio. Não era um homem feio, longe disso, era um homem até deveras atraente e consciente disso. Aí é que residia o problema de Miguel, era demasiado convencido de si mesmo, pensava que todas as mulheres se renderiam ao seu físico, esquecendo-se que uma mulher precisa muito mais do que o físico para se apaixonar. Houve uma altura na minha vida que também me deixei encantar por ele, me deixei seduzir. Mas paguei caro esse deslize quando me dei conta que não era a única a merecer a sua atenção. Tinha sido uma lição na minha vida, não mais me apaixonar por homens demasiado bonitos. O avião sofreu um ligeiro estremecer, ele abriu os olhos e deu comigo a observá-lo. Fingi olhar para outro lado. - -  -  Chegamos ao nosso destino. - sorriu
Não lhe respondi. Seguiu-se a azáfama habitual que sucede a chegada ao destino. O sair cambaleante, voltar a tocar terra firme, procurar a bagagem, passar pelo check- out, essas coisas que sucedem a um voo. Fizemos todo esse ritual lado a lado. Em silêncio. Ele já me conhecia o suficiente para saber ler em meus gestos, meu rosto, quando eu estava disposta para conversar e quando não estava. E hoje certamente não estava.
Chamamos um Táxi. Ele indicou a morada para onde nos devia levar. Algures perto de Victoria Station se bem me apercebi.
- É aí que vou ficar? - perguntei-lhe
- É um apartamento que a empresa tem aqui para estas urgências. enquanto não arranjarmos outra coisa vamos ficar lá.
- Vamos? - olhei para ele
- Sim vamos. É grande o apartamento. Não te preocupes que o apartamento é grande. E além do mais o mais tardar amanhã vai chegar outro colega de Espanha.
- Pensei que ia ficar sozinha, ter um apartamento só para mim. Não me agrada ter que dividir o meu espaço.
- É algo provisório, até te arranjarmos um sitio para ficar mais perto do escritório.
- Está bem.
Não me agradava a ideia, mas concordei. Estava demasiado cansada para ripostar, para discutir o que quer que fosse. Fui observando a paisagem que se desenrolava conforme o carro abria caminho pela cidade. Era a minha primeira vez em Londres. Sempre sonhara em ir lá, quando jovem sonhava em ir de férias, mais velha fui sonhando em vir para cá trabalhar. Esta cidade com as suas cores cinzentas, com umas pinceladas de sol que se antevia por entre as nuvens exercia um fascínio enorme em mim. Apesar de tudo ia adorar cá estar, ia adorar poder caminhar por aquelas ruas, visitar aqueles locais que apenas conhecia de revistas e livros. Se tinha que fazer isto mais valia mesmo resignar-me. E enfrentar o que estava para vir.
Chegamos ao sitio que ia ser a minha morada nos próximos dias. Miguel tratou de levar as nossas malas enquanto eu olhei mais uma vez para a cidade, começava a escurecer. O sol recolhia-se aos poucos, as cores escuras começavam a tomar conta dos contornos dos edifícios. Subi pelas escadas, não gostava de elevador, e ia saber-me bem uns momentos sozinha sem a presença de Miguel.
Chegamos ao mesmo tempo. Apartamento 6. Entramos. Um hall de entrada espaçoso nos recebia. Procurei logo os quartos. Havia vários, quatro ao todo. Entrei logo no primeiro quarto. Era amplo, acolhedor. Gostei à primeira vista. Corri para a janela e abri a cortina. A minha respiração parou. Adorei as vistas. Daquela janela observava a azáfama da vida que corria lá em baixo. Um vai e vem de carros, de gentes. Sorri contente. Gostei do pormenor da janela, na saliência onde se encaixava a janela estava um pequeno sofá instalado. Imaginei-me logo ali sentada ao fim da tarde a observar a vida lá fora ou simplesmente a ler ou a trabalhar no portátil. Era um bom lugar para me aninhar quando as saudades de casa me consumissem.
- Já instalada? - perguntou Miguel da porta.
Quando dei por mim estava mesmo sentada no sofá. - Sim é este!
- Mas ainda não viste os outros! - riu-se ele
- Não é preciso, é este mesmo que quero!.
- Anda daí ver o resto da casa. - disse-me ele estendendo-me a mão.
Olhei-o desconfiada. Hesitante entre o ir e não ir. Afinal ele era meu chefe tinha que ponderar bem o meu comportamento. Decidi ir, fingi não ver a mão estendida e fui à sua frente.
Fizemos uma pequena visita à casa, quatro quartos todos com casa de banho própria, uma sala comum, uma cozinha, e uma terraço magnifico que tinha uma vista ainda melhor que a minha janela. Sentámo-nos um bocado cá fora. Absorvendo tudo o que nos rodeava. Ao sentar-me um objecto caiu ao chão. Era o telemóvel. Nem me lembrara mais dele. Ainda se encontrava desligado. Liguei-o.
- Vou à cozinha beber água. Queres? - perguntei ao Miguel
- Sim traz para mim também. - pediu-me
Pousei o telemóvel no banco e fui à cozinha.


******************************************

Miguel ficou ali sentado embrenhado nos seus próprios pensamentos. Passou a mão pelo cabelo, estava exausto. Ouviu um sinal de mensagem. Olhou para o telemóvel de Marylin e viu que uma mensagem tinha chegado. Pegou no objecto não cedendo à curiosidade. De quem seria? Do tal do Helder? Não resistindo a um impulso súbito leu a mensagem: "AMO-TE. Esperarei por ti!". Sentiu um aperto dentro do peito. Sentiu-se sufocar. Ouviu os passos dela denunciando que estava a caminho. Sem hesitar apagou a mensagem. Todo e qualquer vestígio daquela mensagem alguma vez ter existido evaporou-se naquele seu gesto egoísta. Ela voltou com os copos na mão. Sentou-se ao seu lado. Ficaram em silêncio. Ele remoendo-se por dentro lamentando o acto mesquinho que acabara de cometer. Ela remetida aos seus próprios pensamentos. Pegou no telefone, viu se tinha sinal de alguma mensagem ou chamada perdida. Suspirou desiludida. Pousou o telefone, acercou-se mais da extremidade do terraço e ali ficou por tempo indeterminado a olhar o horizonte. Miguel sentindo-se mal consigo mesmo retirou-se. Sem uma palavra. Sem confessar o que fez."

Autoria: Lcarmo (Bela)

Monday, May 3, 2010

O pulsar da Paixão


 imagem daqui

"Estava apaixonada. Sentia em todo o seu ser o pulsar da paixão. O seu olhar brilhava, as faces de tom rosado denunciavam um olhar recheado de segredos, de confidências, de mistério. A sua alegria espontânea e singela despertava a curiosidade de quem a rodeava. Como sorria? Como encontrava forças para afogar as suas mágoas e continuar sorrindo. As pessoas não entendiam. Ela mesma não entendia. A paixão essa brotava a cada dia que passava, fortalecendo-a. Caminhava segura de si, sorrindo a quem passava, cumprimentando com um ligeiro acenar de cabeça ou um olá esfuziante. Sentia o olhar dos outros sobre si, alguns de condenação, outros de admiração, alguns até de inveja. Mas ela ignorava isso tudo. Estava apaixonada. E como isso era bom! Andara cega, construíra muros. Quisera a todo o custo proteger o seu coração de amar os outros, de ser amada em retorno. Mas estava enganada. Ninguém pode escolher não sentir mais, não amar mais. È um acto involuntário, algo que invade nossa alma, toma conta do nosso ser. Pé ante Pé a paixão entrou em sua vida. Silenciosa, entreabriu a porta que ela fechara, com cuidado, certa de que não poderia entrar de rompante. A paixão tomou a forma do sol, das flores que emanavam um perfume sedutor quando caminhava pelos jardins, dos sons que invadiam o seu ser, dos toques fugazes, dos sorrisos rasgados. Entrou assim de forma invisível, seduzindo-a, mostrando-lhe o belo que era viver e estar viva. Pintou de cores coloridas as paisagens por onde ela passava, o chão esse tornava-se mais límpido á sua passagem. Aos poucos foi tomando consciência da beleza que a rodeava, foi despindo as vestes negras que lhe tolhiam a alma de cores mais leves. O vento que outrora a fazia encolher de frio, era agora uma ligeira brisa que a envolvia num abraço apertado. Encontrou nos prazeres antes relegados para segundos e terceiros planos a essência que a fazia querer amar mais e mais. A sua aura antes escura e triste, era agora brilhante, capaz de ofuscar quem olhasse para ela minuciosamente. Cantava. Dançava. Coisas que nunca antes tinha feito. A felicidade que brotava da sua alma, escorria -lhe por entre sorrisos e afagos. Gostava de toques. Gostava de sentir a presença dos outros, dos seus dedos percorrerem vorazes os corpos dos outros, gostava de sentir a textura que os seus dedos teciam nas peles, o suave roçar das mãos das pessoas. Sim estava apaixonada. Por quem perguntam vocês? Estava apaixonada pela vida que voltara a reconquistar, estava apaixonada por todos os segundos, minutos, horas, que lhe era permitido viver. Até quando? Não queria saber, queria apenas manter a sua alma aberta ás sensações, à plenitude dos sentimentos. Estava acima de tudo apaixonada por si mesma. E isso dava-lhe uma confiança nunca antes sentida."


Autoria: Lcarmo (Bela)
Tema: PAIXÃO

Sunday, May 2, 2010

Momento: a duas vozes (parte XXI)


ELE


Chamei nomes a mim mesmo. Puxei os cabelos de tanta raiva contida. Porque simplesmente me acorvadei? Regressei a casa em transe. Não fui buscar a minha filha, não liguei à Ana, nada. Aquele silêncio em casa matava-me lentamente. Atirei-me para a cama, escondi meu rosto no travesseiro. Senti-me um palhaço, actor num circo qualquer, que as pessoas iriam se rir das atitudes tristes. O orgulho é a pior arma num homem não é? Por orgulho já se matou, já se perderam amores, vidas destruídas. E eu tinha sido orgulhoso. Ciumento. O Oposto do que sempre julguei ser. Não me reconheci. O Helder de antigamente nunca se deixaria intimidar por um outro qualquer. O Helder de antigamente teria ido falar com ela, abraçá-la, beijá-la, não se importando com quem estivesse presentes. Onde estava esse Helder agora? O meu olhar pousou no candeeiro do quarto. Quantas vezes não estivemos deitados naquela mesma posição, em conversas que duravam a noite toda? Tinha sido naquela cama a nossa primeira noite de amor, a noite que lhe prometi que tomaria conta dela para todo o sempre. Ali jurámos juras de amor, trocámos caricias, exploramos nossos corpos nunca saciados da presença um do outro? Levantei-me zangado, desfiz em segundos a cama, arranquei os lençóis que ainda tinham o cheiro do seu corpo. Prostrei-me no chão. Pequeno. Magoado. Algo chamou a minha atenção. No chão por baixo da minha almofada um papel. Era uma carta. Dela. Meu coração quase parou. Mesmo longe não parava de me surpreender. Desdobrei o papel, nervoso, as minhas tremendo. E li:

"Helder,

Se estás a ler esta carta é sinal de que estarei a km de distância de ti. Quis o destino, a vida, ou quisemos nós que isto acontecesse. Não penses de forma alguma que terá sido algo premeditado, não o foi. Fiquei tão surpresa quanto tu com o curso que a minha vida tomou. Não te peço que esperes por mim, nunca me atreveria. Lamento que não me tenhas deixado explicar, partilhar contigo uma parte de mim que ainda não me tinha atrevido a contar-te. Não espero que me perdoes. Já o deveria ter feito quando partilhas-te a tua vida comigo, a história de Mariana, a existência de Sofia. Esperei sempre pelo momento certo, por aquele momento em que pudesse realmente abrir o meu coração contigo. Tentei, juro que tentei. Tantas vezes. Mas nunca senti as forças necessárias para o fazer, não porque não confiasse em ti, mas porque não era algo bonito de contar. Todos temos fantasmas que nos atormentam. Os meus são bem reais. Nunca te questionas-te o facto de ser uma pessoa tão isolada, tão difícil de conquistar a confiança? isso não nasceu comigo, foi algo que a vida me obrigou a desenvolver. Não espero que agora a nossa vida retome o ponto de partida em que estavámos, porque temo que tenhamos avançado o ponto do não retorno. Encontrei em ti e em Sofia a família que nunca tive, sonhei para nós sonhos que agora me parece que nunca tive direito a sonhá-los. Esta não é uma carta de despedida, é apenas um até já, caso o destino tenha reservado para nós um encontro no futuro. Espero que sim, não depende dele apenas, depende de ti e de mim. Qualquer que seja a tua escolha, respeitá-la-ei. Amo-te demasiado para não permitir que sejas feliz. Amor é desejarmos a felicidade de alguém, mesmo que seja longe de nós. Se tiveres que ser feliz sem mim, eu tentarei ser feliz sem ti. Espero ver-te em breve,


Marylin"


Por momentos deixei-me estar ali sentado no chão, segurando a carta na mão. Li e reli-a sem conta. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem. Uma palavra apenas bastava. "AMO-TE. Esperarei por ti!"

Autoria: Lcarmo (Bela)

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Sunday, April 18, 2010

Momento: a duas vozes (parte XX)


ELA


"Desde pequena que sempre tivera um fascínio por aeroportos. Talvez porque tantas vezes acompanhara a minha mãe na espera das inúmeras viagens que o meu pai fazia. Sempre gostei de observar o vai e vem de pessoas, de entes queridos que se reencontram, de emoções à flor da pele. Mas hoje isso tudo me pareceu vago. Pela primeira vez na minha vida senti o peso da solidão nos meus ombros, que me fazia arrastar os pés literalmente aeroporto fora. Carregava comigo o peso da emoção de deixar para trás uma vida mais do que desejada. E partir assim sem uma despedida, sem um último abraço, sem um beijo. Ainda era cedo para fazer o check in. Sentei-me num banco. Uma vontade de chorar se apoderou de mim, mas consegui me controlar. Observei as pessoas que chegavam, procurando as pessoas que amavam com o seu olhar e senti-me muito pequena, insignificante até. Abri meu livro, precisava de me distrair com histórias de outros, para esquecer a minha própria história. Ler era o meu prazer maior. Aquele que me acompanhava nas noites frias de inverno, e nos dias quentes de verão. Enquanto lia abstraí-me completamente de tudo o que me rodeava. Era só eu e a história. E mais ninguém. Meu olhar percorreu mais uma vez aqueles rostos. Que procurava eu encontrar? Por uma vez na vida gostaria que a minha vida fosse um filme, daqueles que tanto chorei no cinema, enquanto as lágrimas me molhavam as pipocas. Desejei que ele me viesse esperar, fechei os olhos e consegui visualizar a cena na minha mente. Eu ali sentada, ele viria por trás de mim. Tocaria em meu ombro. Eu me viraria e me atiraria nos seus braços. Se ele me pedisse para ficar eu ficaria. Neste momento, aqui neste lugar, mais vulnerável do que nunca eu teria ficado se ele me pedisse. Nada mais me bastaria do sentir o seu abraço, o seu cheiro. Se a minha vida fosse mesmo um filme, eu a heroína, ele entraria por aquela porta para me vir buscar. E eu iria. Sem pensar no futuro, sem querer saber o que nos esperaria. Se fosse um filme, mas não era. Finais felizes cada vez mais só faziam sentido nos livros, nos filmes, nas músicas. A vida das pessoas era muito mais complicada do julgávamos, muitas vezes para se ter um final feliz, muitas pontas soltas ficariam. Senti de repente um toque no ombro. Senti-me estremecer. Virei-me feliz meus olhos procurando os olhos que tanto amavam. Mas não foram esses olhos que tanto queria que me olharam de volta. Senti-me desolada.

- Miguel? - perguntei como para me certificar que não estaria a sonhar

- Então pronta para a viagem? - perguntou sorrindo.

- Vieste despedir-te? - perguntei a medo. Meu olhar pousou na mala dele. Por momentos não quis acreditar no que via. Não podia ser verdade pois não?

- Eu vou no mesmo avião que tu, aliás vamos lado a lado. Achas que te ia deixar ir sozinha? Vou-te orientar nestas primeiras semanas.

O meu olhar devia denotar a desilusão que sentia por dentro. Era impossível ele não ter notado como os meus olhos escureceram, ficaram negros, tal e qual a cor que morava dentro de mim.

- Supresa? - perguntou-me.

- Sim. Não esperava que também fosses.

- Vou para dar as primeiras orientações. Depois volto. Mas nos primeiros tempos vamos trabalhar perto um do outro.

Olhei para ele. Não sorri. Não me agradava a ideia. Suspeitava que por detrás deste seu acto estaria algum interesse que eu ainda não descortinara qual. Não me sentia segura na sua presença. Ele assustava-me. E eu não gostava de mim quando estava perto dele. A minha vontade foi dar meia volta e sair dali o mais rápido possível mas não o fiz, fiquei ali especada a olhar para ele, enquanto a minha mente me bombardeava com perguntas. Senti-me desfalecer. Ele agarrou-me a tempo de evitar que caísse. Mal senti suas mãos me tocarem estremeci, bruscamente gritei-lhe: - Larga-me! Não te atrevas a tocar-me! - gritei furiosa. largou-me de imediato. Arrependi-me de ter sido tão brusca, afinal tinha evitado que caísse e me magoasse, mas só de imaginar que me tocassem, repugnava-me a ideia.

Caminhamos juntos para o check- in. Mais uma vez olhei para a entrada à espera de um milagre. Mas o silêncio do Helder tudo me dizia, por vezes o silêncio das pessoas dizem muito mais do que a gente pensa. Basta saber interpretar. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, prometi que seria a última lágrima, pelo menos para hoje. E com o coração partido, pois uma parte de mim ficou naquele aeroporto, parti em direcção ao meu destino."


Autoria: Lcarmo (Bela)

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Wednesday, April 14, 2010

Carta a uma filha


imagem daqui


"Ainda não nasceste. Aliás cada dia que passa acho que isso está longe de acontecer. Mas imagino-te. Poderia descrever ao pormenor o teu rostinho alegre e sorridente, esses teus olhos castanhos que me fazem lembrar duas amêndoas. Fecho os olhos, imagino o que seria sentir o teu corpo pequenino junto ao meu, o teu cabelinho ondulado pelos ombros. Irrequieta, de natureza afável é assim que tu és. A mais amorosa das meninas, mas também a mais teimosa, mais perseverante. Fazes-me lembrar tanto eu quando tinha a tua idade. Gosto daqueles momentos em que sentadas na cama, eu te leio as histórias que me fizeram sonhar e que quero dividir contigo. Quero que tenhas a mesma capacidade que eu para sonhar, porque a vida sem sonhos é uma vida vazia, não quero isso para ti. Imagino aqueles nossos passeios de mão dada a beira mar, ambas descalças sentindo a areia por entre os nossos dedos, a água gelada que nos causa arrepios de frio. O som do nosso riso a ecoar na paisagem é claro e cristalino. Abraço-te. Abraças-me. Ficamos por tempo indeterminado ali juntas, a nossa cumplicidade latente em todos os nossos gestos. Fazes-me perguntas, perguntas características da idade para as quais às vezes tenho que improvisar respostas. Gosto daqueles dias em que dividimos as pipocas no cinema, dando gargalhadas a ver uma comédia qualquer. Ou os dias em que simplesmente ficamos as duas de pijama o dia todo em casa, enroscadinhas no sofá com uma mantinha em alegres conversas e partilhas. Gosto quando me olhas nos olhos e dizes - me "Gosto de ti, mãe" as lágrimas escondem-se por detrás do sorriso com que te brindo. Também te amo muito, mesmo sem ainda teres nascido já amo a ideia de ti. Mais do que me preocupar em ter um pai para ti, preocupa-me não te ter a ti. Pudesse eu ter uma coisa sem ter a outra. Sim sei que é egoísta da minha parte, todas as crianças precisam de um pai, mas e aquelas mães que querem tanto sê-lo e ainda não apareceu o Pai? Por isso minha querida, vivo na ilusão de um dia permitir que nasças, que entres na minha vida e me mostres o verdadeiro amor incondicional. Porque o outro esse já o conheço, mas o amor de mãe e filha esse ainda quero experimentar. Tenho sido paciente. Tu também, sei que estás ansiosa por conhecer o mundo, adquirir todos estes conhecimentos, deixares-te absorver pelos livros que tenho para contigo partilhar. Mas seremos pacientes, as duas, até ao dia que o teu Pai nos encontrar. Bela"



Sunday, April 11, 2010

Momento: a duas vozes (parte XIX)


ELE


"Deambulei sem destino por uma data de horas. Estava literalmente perdido, desnorteado. Estava a ser cobarde e sabia-o. Estava a empurrar literalmente Marylin para fora da minha vida. Era mesmo isso que eu queria? Não seria preferível tê-la, nem que fosse por algum tempo ausente, do que não tê-la de todo? O telefone tocou. Era Ana. Atendi.

- Sim Ana.

- Onde estás? - onde estava eu? olhei à minha volta, estava sentado num banco de jardim no centro da cidade. Nem me dei conta de como lá fui parar. Não tinha memória sequer de ter pegado no carro.

- Estou no centro - respondi-lhe

- Não achas que devias fazer alguma coisa em relação a Marylin? - perguntou-me. Devia não devia? Então porque não o fazia?

- Ana eu preferia não discutir esse assunto.

- Ela esteve aqui Hélder, ela está desesperada com esta tua atitude. Quer-me parecer que não é uma atitude de homem, se me permites a franqueza. Ela não cometeu nenhum crime para a tratares assim, se lhe deres oportunidade de justificar os seus motivos de certeza que verias as coisas com outros olhos.

- Eu já disse que não quero falar nesse assunto - respondi áspero.

- Tu é que sabes. A vida é tua, o amor é teu, a dor será tua. Só telefonei para te avisar que o voo dela é ao fim da tarde, às 18:30 se quiseres remediar a situação, faz-te ao caminho. Faz o que é certo tu fazeres. Não vou dar conselhos porque já és homem suficiente para saberes o que queres. Mas para que fique claro não concordo com a tua postura.

- Ana prefiro que não se meta nesse assunto.

Desliguei o telefone. Estava farto que me dissessem o que devia ou não devia fazer. Eu é que sabia da minha vida, da minha dor. Olhei para o relógio. Passava pouco das 16. Se me apressasse poderia chegar a tempo de me despedir dela, ou de não a deixar partir. O meu coração começou a bater mais rápido perante essas possibilidades. Ir ou não ir? Se fosse poderia ao menos vê-la mais uma vez, dar-lhe um último beijo até ao próximo reencontro. Era tão fácil eu pegar no carro e ir até lá. Surpreendê-la. Dizer-lhe que a amava, que esperaria por ela. E eu sabia que no fundo esperaria o tempo que fosse necessário. Era a mulher que eu amava, mais nenhuma conseguiria me fazer sentir o que sentia novamente. Levantei-me e caminhei apressado para o carro. Afinal sempre sabia onde o tinha estacionado. Senti-me nervoso, ansioso, mas feliz por ter tomado essa decisão. Olhei para o relógio. Ainda dava tempo, não dava? Com estes pensamentos na cabeça fiz-me à auto-estrada. Não me lembro do caminho, apenas me lembro da velocidade a que ia. Se estivesse algum carro-patrulha algures escondido provavelmente iria me dar mal. Mas naqueles minutos nada disso me importou. Queria vê-la, beijá-la, dizer-lhe que a amava. Que tudo ia ficar bem, que iria visitá-la quantas vezes fosse necessário. Ela mais do que nunca precisava do meu apoio, e eu já não conseguia viver sem essa mulher. Cheguei ao aeroporto em menos de meia hora. Corri para a zona do check in. Meu olhar percorreu todos os rostos que ali estavam. E não eram poucos. Procurava o meu rosto, aquele rosto tão familiar que conhecia os contornos com infímo pormenor, aqueles olhos onde me perdia, aquela boca da qual nunca ficava saciado. Não a via. Uma desolação se apoderou de mim. Teria percebido mal as horas? Seria tarde demais? Quem me visse devia pensar que eu seria um lunático que corria a zona de um lado ao outro. E eu estava realmente fora de mim. De repente via-a. De costas para mim. Corri para lá. Abracei-a. Virei-a para mim. Surpreso larguei a pessoa que abraçava. Não era ela. Balbuciei um desculpe e afastei-me envergonhado. Senti-me desolado. Com os ombros encolhidos pelo desânimo decidi me vir embora. Era tarde demais. Caminhava para a saída, aliás já estava praticamente na saída quando o meu olhar pousou numa zona de cadeiras onde se encontravam pessoas sentadas. Reconhecia-a de imediato. Sentada com um livro no colo lia atentamente. Havia algo de tão belo naquela imagem que me controlei para não chorar. Seu cabelo caía em cachos. Folheava o livro com cuidado, tão característico nela. Estava completamente ausente, longe do que a rodeava, provavelmente sua mente num mundo apenas dela, e da história que lia. Senti-me invadir uma felicidade sem tamanho. Caminhei em sua direcção. Iria poder dizer-lhe o que estava preso na minha garganta. Um vulto se aproximou dela, tocou-lhe ao de leve no ombro. Reconheci de imediato esse vulto. Ela mostrou um ar surpreso, até ligeiramente desiludido. Eu parei. Parei ali naquele limiar entre o ir e não ir. A felicidade de há momentos esfumara-se. Olhei mais uma vez para a mulher que amava, tão perto e tão longe. Virei as costas e vim-me embora. "

Autoria: Lcarmo (Bela)
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Tuesday, April 6, 2010

Momento: a duas vozes (parte XVIII)

imagem daqui

ELA


"Helder continuava sem me atender o telefone. Perdi a conta das chamadas que fiz, das mensagens que enviei. Fui para casa preparar a mala. Não era fácil fazer-se uma mala assim sem planos de regresso. Mecânicamente lá enfiei alguma roupa, não estava muito preocupada em escolher o que levar. Nada me importava. Sentei-me na beira da cama, olhei para o espelho que me retribuía uma imagem desoladora. Olheiras enormes, cabelo em desalinho. E se fosse procurá-lo? Podia ir a casa de Ana, ver se ele se encontrava lá. Pois podia. Sem pensar duas vezes, decidi ir. Quando dei por mim já me encontrava à porta da casa da Ana a tocar à campainha. Foi ela que veio abrir a porta.

- Olá - balbuciou surpreendida por me ver

- Olá Ana, o Helder está por aí? - perguntei ansiosa

- Não. Ele esteve aqui de manhã, deixou a menina, mas ainda não regressou.

- Ah. - ficamos ali as duas sem saber que dizer uma à outra.

- Não quer entrar? - convidou a Ana - Eu ia mesmo tomar um chá, faz-me companhia?

- Sim faço. - precisava mesmo de beber alguma coisa, com o meu estado de ansiedade não fazia uma refeição desde ontem.

Fomos para a salinha de estar, onde me sentei num dos sofás. Perguntei por Sofia, Ana disse-me que tinha ido ao parque com o avô.

Ana foi à cozinha. Fiquei ali sozinha, meu olhar deambulando pelos retratos de Mariana que decoravam a sala. Senti-me a invadir um espaço que não era meu. Ana voltou rapidamente, livrando-me de uma série de pensamentos que me começavam a inquietar. Em silêncio serviu.nos a ambas. O chá cheirava mesmo bem, a jasmim. Ficamos ali sentadas, cada uma embrenhada nos seus próprios pensamentos. Ana foi a primeira a interromper o silêncio.

- Eu não tenho o direito de me imiscuir na vossa vida, mas estou certa de que algo se passa. Helder hoje estava transtornado, tão transtornado como no dia em que a minha filha partiu. Eu sei que não fui correcta contigo no inicio, espero que me perdoes, mas era o coração de mãe a falar mais alto. Eu olhava para ti e imaginava que podias ser a minha filha entendes? - Aquiesci, sentindo um nó na garganta. As lágrimas escorriam dos meus olhos. Senti-me frágil, exposta. - Deu para entender que alguma coisa se passou. Não sei o quê, helder não me contou, mas pelo vosso estado dá para ver que vos está literalmente a empurrar para caminhos opostos. E sinceramente não gostaria de ver isso. Não depois de ter visto o que a tua presença fez á vida da minha neta e do Helder. Foste uma lufada de ar fresco, foste o ar que eles precisavam para respirar. E mesmo tendo a minha dor de mãe ainda muito latente, tenho consciência de que neste momento tu saíres da vida deles seria um desastre total. Eu gosto muito do Helder, temos as nossas diferenças, mas nunca em momento algum o achei culpado do que aconteceu a mariana. Foi uma fatalidade. Podia ter acontecido muito mais tarde. E sinceramente quero que ele consiga a estabilidade que tanto precisa, para criar a menina, porque é muito complicado criar-se um filho sozinho. Estes últimos dias tomei consciência de que tu eras mesmo o que ambos precisam. Estou enganada?

Olhei-a nos olhos. Por entre os meus olhos encharcados de lágrimas mal a conseguia ver. Ela abriu-me os braços e eu deixei-me abraçar. Ainda chorei mais pois lembrei-me da minha própria mãe. Não sei por quanto tempo chorei, Ana foi paciente não me apressou. Então abri meu coração para ela. Falei-lhe do que me ia na alma, da minha mãe, da ida para Londres, do quanto queria dividir minha vida com o Helder e a Sofia. Ela ouviu-me. Até ao fim. Não me interrompeu. E eu senti-me melhor por tirar este peso dentro de mim. As lágrimas cessaram por elas mesma, o coração sentiu-se menos angustiado.

- Ana, eu tenho que ir. - olhei-a nos olhos - A Ana entende, não entende?

- Não esperaria outra coisa de ti. Esta tua atitude só veio reforçar a ideia que vinha moldando de ti. És alguém consciente dos seus valores morais, e neste momento a pessoa que mais depende de ti, quer queiras quer não, é a tua mãe. E estás a fazer o que é correcto. Claro que estás a pagar um preço demasiado caro para teres essa postura, mas minha querida, a vida é assim mesmo. Dá-nos com uma mão, tira com a outra. Não vês o meu caso? perdi a minha filha, mas ganhei uma neta. Nem tudo é mau, nem tudo pode ser mau. Quanto ao Helder, ele é muito temperamental. Destruíste-lhe os sonhos que ele andava a sonhar para ti e para Sofia. Vai demorar algum tempo a ele se consciencializar de que ás vezes temos que tomar o rumo de algumas estradas secundárias para podermos regressar à estrada principal. Sim são atalhos. Desvios. Mas que depois mais à frente se voltam a cruzar. Não me quer parecer que ele esteja em condições de abdicar de um amor assim, não depois do que passou. Mas vais ter que lhe dar tempo. Vai para Londres, segue o teu curso de vida. Ele vai cair em si, no dia em que acordar e se der conta que estás longe. Então aí terá que ser ele a fazer uma escolha, o de lutar por ti, ou ficar de braços cruzados. Faz de conta que é um intervalo na vossa relação do qual a mesma só terá que sair fortificada. O meu instinto diz-me que sim. Mas podes estar descansada ainda vou falar com ele sobre isso. Quem sabe ele não concorda em ir contigo, eu fico com a menina. Para tudo há solução nesta vida, menos para a morte. Convém nunca se esquecerem disso. E mortes já houve que chegue nesta família.

Acariciou-me o cabelo, enquanto me dava um beijo meigo na testa. Senti-me muito reconfortada pelas palavras desta senhora também ela já tão sofrida. Esbocei um sorriso de agradecimento. Não eram necessárias palavras pois não? Era chegada a hora de eu ir embora, queria evitar ver Sofia para evitar a dor da despedida. Agradeci-lhe mais uma vez, o facto de me abrir o seu coração daquela forma e saí de lá confiante de que se haveria alguém capaz de abrir os olhos ao Helder, seria ela com certeza. Entrei no carro e fui para casa terminar de fazer a minha mala."

Autoria: Lcarmo (Bela)

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