imagem daqui
"Todos os dias tinha o mesmo sonho. Encontrava-se descalça, olhando para o precipício. Não sabia como fora ali parar, o olhar vagueava ao seu redor. Encontrava-se só, apenas ela e o abismo que a parecia querer engolir. Havia algo de aliciante na forma como o abismo chamava por si, convidando-a a aninhar-se nos seus braços. E como precisava de sentir-se novamente abraçada. A cada dia se acercava mais do precipício. Se no seu sonho aparecesse uma ligeira brisa, seria o suficiente para a fazer perder o equilíbrio. Mas não existia brisa, não existia som, não existia outras pessoas. Apenas ela e o abismo que chamava, sussurrava-lhe ao ouvido" Anda, anda. Dá-me a tua mão." Mas ela não ia. Alguma força estranha fincava os seus pés no solo árido, mesmo sentindo-se aliciada não se conseguia soltar. Suor escorria-lhe pelo rosto, o cabelo desalinhado, molhado. A sua camisa de noite moldava-se ao seu corpo. A imagem tinha algo de sensual, erótico até. As formas do seu corpo eram reveladas pela transparência da camisa. Não se sentia exposta, pelo contrário, sentia-se sedutora. Encarava o abismo que a chamava com um amante que a seduzia, não com palavras, mas com gestos. E ele continuava a tentar seduzi-la. E se saltasse? Acordaria deste sonho? Sempre que estava na iminência de saltar o sonho terminava com ela dando um grito estridente, molhada em suor, enquanto os seus olhos se ajustavam à escuridão. Se saltasse mudaria o curso do sonho? O que a faria sentir? O que a impedia de saltar? Chegou-se mais perto, ligeiramente. Olhou para o fundo. Não via nada. Se ao menos visse alguma coisa, soubesse o que a esperava lá no fundo, poderia escolher saltar ou não. E se esperasse que o destino decidisse se era para ela saltar ou não? Recuou um passo atrás. Não. Não ia deixar mais nada nas mãos do destino. A escolha desta vez seria apenas dela. Mais uma vez avançou destemida, decidida. "Chama por mim outra vez" - pediu. "Anda, anda" - a voz ecoou lá do fundo - "Porque não vens?". Porque não ia? Enchendo-se de coragem, saltou. Acordou assustada, sentindo que tinha finalmente tido coragem de saltar. Esboçou um sorriso. Mas afinal então o que a esperava no abismo que a engoliu? Olhou ao seu lado, visualizou um corpo nu ao seu lado. Belo, esculpidamente belo. Perfeito. A luz da aurora matinal entrava pelas frinchas da persiana, desenhando contornos sensuais no corpo. Tocou-lhe ao de leve. Sim era real. Ao fim de meses com o mesmo sonho que a impedia de saltar, finalmente saltara. Tinha decidido saltar para o abismo no momento em que o conhecera. Agora sim o seu sonho fazia sentido. Até aqui não saltara porque ele não estaria lá no fundo ao lado dela. E agora estava. Sentiu-se feliz, encostou seu corpo suado ao dele, beijou seus lábios e aninhando-se no seu abraço adormeceu. Desta vez sem sonhos com o abismo, pois finalmente se deixara possuir pelo abismo da vida e do amor que a engoliram."
Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio do mês de Abril para o Blog Fábrica de Letras
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17 comments:
Moça, senti aqui na pele a tua descrição.
Arrepiou-me os sentidos!
Salvar-se do abismo , tendo o amor como apoio.
Adorei tua participação!
Beijo
=)
Muito bonito!
Estes sonhos em que saltamos ou nos deixamos cair, têm sempre uma raiz nos nossos medos. Tu descobriste, tiveste coragem e avançaste. Gostei!
Bjs
Gostei.
Olha aí está caríssima, quantos há que perdem essa hipótese por terem medo de arriscar? ;) gostei da mensagem.
Bj
- Venha até a borda, ele disse.
- Tenho medo.
- Venha até a borda, ele insistiu.
Ela foi, Ele a empurrou...
e eles voaram.
... de Guillaume Apollinaire
Gostei muito...
Ana Cristina: Obrigada. O amor tem mesmo essa capacidade de nos salvar... bjs
Teresa: Não é fácil descobirmos os nossos medos... bjs
El Matador: Obrigada
Catsone: ás vezes precisamos jogar as cartas todas.... mesmo que perdamos. bjs
Susana: Obrigada
O amor é um abismo delicioso, incomparável.
:)
Abraço,
Ane
.: Olá Ane, obrigada pela visita... bjs
O que dizer?
Como sempre, um texto repleto de sentimos e emoções... que nos transportam a nós para a história das letras que escreves.
Por vezes temos medo de ser felizes, porque temos ainda mais medo do que poderá ser perder essa felicidade. Eu própria já me senti assim ocasionalemente e por isso revejo-me neste texto.
Parabéns.
Abismos desses (quer dizer, com as devidas diferenças de género) também eu.
Bela este teu conto foi aquele que mais mostrou a diferença na tua maneira de contar e escrever. Excelente.
Su: Obrigada. Eu por vezes até tenho medo de vos cansar com tantos textos sempre á volta das emoções. Mas sou assim que eu sou, um ser emocional acima de tudo. bjs
Johnny: É uma forma de abismo, engole-nos, no bom sentido claro. bjs
Brown Eyes: Notas-te alguma diferença Mary? Ás vezes tenho medo de me repetir e falar apenas de emoções, mas já sabes que eu sou acima de tudo emocional... bjs
Ficam tantos sonhos por realizar quando não se tomam as decisões na hora certa com o medo de arriscar...
Tão suave e sensual este teu 'Abismo'
bjo
MZ: É por vezes o medo de arriscar inibe as pessoas. Obrigada. bjs
Que lindo este texto Bela. Um abismo como gosto, apaixonante e com um fim feliz. Uma romântica só pode gostar. Beijinhos. Adorei! És mesmo uma grande contadora de histórias.
Olga: Obrigada! Eu adoro contar histórias... quando fôr velhinha vou entreter meus netos... bjs
Muitíssimo bonito, como era de esperar!
É a melhor forma de enfrentar os abismos do ser humano. Com amor e coragem!
Beijinho** querida!
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