ELE
Um súbito telefonema de Ana deixou-me angustiado. A sua saúde já fragilizada com a perda da filha começava a piorar. A doença que julgáramos vencida estava agora em vias de voltar a atormentar-nos. Logo que me foi possível arranquei para casa dela. Sofia estava comigo. Incrível a capacidade que as crianças têm de se abstrair do que as rodeia, era como se a minha filha vivesse num mundo apenas dela, inconsciente do que se passava à sua volta. De certa forma era um alívio para mim. Se fosse porventura mais velha, faria com certeza mais perguntas, não entenderia porque a avó não queria brincar com ela, porque os seus olhos estavam negros e sem vida.
Sentei-me no sofá ao seu lado. No espaço de uma semana a mulher que eu sempre conhecera como forte, parecia um trapo velho amarrotado. Segurei-lhe a mão com carinho. Sofia no meu colo tentava a todo custo saltar para o colo da avó, repreendia. Fez beicinho como só ela sabia fazer.
- Deixa-a estar, anda à avó querida... - deixei-a deitar-se ao seu lado. Encostou a cabeça em seu peito, seus dedinhos desalinhando o cabelo da avó. Senti um ligeiro aperto no peito por presenciar aquela cena. Dei comigo a pensar que seria injusto para a minha filha mais alguém lhe ser roubado. Era uma probabilidade. Ana sabia que se eventualmente a doença reaparecesse não teria condição física de a combater, escapara à uma década atrás e dizia ser uma grande felizarda por isso. Na sua curta vida Sofia já sofrera a perda da mãe, de Marylin e agora da avó. Eram demasiadas perdas.
- Como se sente hoje? - perguntei-lhe
- Cansada... apenas cansada. Sabes Helder eu sempre estive à espera deste momento, nunca me convenci que iria sair completamente vencedora. Agora percebo que a doença entrou em remissão sim, mas porque eu tinha ainda algo a cumprir aqui na terra antes de partir. Eu tinha que estar ao lado dos últimos dias da minha filha, ver os primeiros passos da minha neta. Agora que a minha filha já partiu, a minha neta já não precisa tanto de mim, a minha doença resolveu reaparecer. Como se tivesse cumprido a minha meta aqui na terra.
- Ana, não diga uma coisa dessas. Vamos lutar, vamos fazer o que for possível para a ajudar. A medicina hoje em dia..
- Ah Helder eu não sei se tenho forças para lutar. Tu ainda não estavas na nossa vida quando passei a primeira vez por isto, não sabes o que dói veres o teu marido, filha a sofrer por te ver sofrer. Não sei se quero viver isso outra vez, não sei se quero.
- Mas tem o seu marido, neta, eles precisam de si... - argumentei eu - eu preciso de si!
- Meu querido tudo nesta vida passa, dói, mas a vida continua. E vocês poderão continuar com a vossa vida mesmo depois de eu partir.Chama-se lei da vida, por mais injusta que possa parecer.
Olhei-a nos olhos. Falava com convicção, mais emocional que racional. Olhei a minha menina que entretanto adormecera nos braços da avó. Estaria a vida a brincar comigo, um constante dá e tira? Um barulho chamou a minha atenção, Pedro chamava-me da entrada da porta. Levantei-me, deixei-as sós.
Estava com um olhar triste, ausente, seu cabelo em desalinho, expressão ausente, de quem não pregava olho desde que soubera a noticia. Sentamos no alpendre cá fora alheios à beleza que nos rodeava. O sol desaparecia por detrás da montanha, pincelando o céu de cores lindas. Em silêncio partilhámos aqueles momentos em que apenas o som da natureza ecoava em nós.
- Duro golpe hem? - iniciou ele a conversa
- Sim, não estávamos mesmo à espera. Que disse o médico em concreto? - perguntei-lhe
- Oh disse aquilo que não queríamos ouvir, que andámos a ignorar. Que reapareceu o tumor, que seria difícil de operar novamente. Aquelas conversas de médico quando sabe que não à mais nada a fazer. Ana recusa qualquer tipo de tratamento que acelere a sua partida ou diminua a sua qualidade de vida. Um amigo médico falou-me numa clínica em Londres onde costumam operar casos destes com êxito. Estou disposto a desfazer-me de tudo, desta casa, do que for necessário para tentar, mas ela não quer.
- Vai ver que ela vai acabar por ceder, vai ver que sim.
- Espero bem que sim Helder, não queria perder a minha mulher desta forma, não para este monstro que já a tentou levar uma vez....
Dei-lhe uma palmada no ombro em jeito de alento, em jeito de coragem. Olhámos ambos para o firmamento incertos do que nos esperava a seguir.
Um súbito telefonema de Ana deixou-me angustiado. A sua saúde já fragilizada com a perda da filha começava a piorar. A doença que julgáramos vencida estava agora em vias de voltar a atormentar-nos. Logo que me foi possível arranquei para casa dela. Sofia estava comigo. Incrível a capacidade que as crianças têm de se abstrair do que as rodeia, era como se a minha filha vivesse num mundo apenas dela, inconsciente do que se passava à sua volta. De certa forma era um alívio para mim. Se fosse porventura mais velha, faria com certeza mais perguntas, não entenderia porque a avó não queria brincar com ela, porque os seus olhos estavam negros e sem vida.
Sentei-me no sofá ao seu lado. No espaço de uma semana a mulher que eu sempre conhecera como forte, parecia um trapo velho amarrotado. Segurei-lhe a mão com carinho. Sofia no meu colo tentava a todo custo saltar para o colo da avó, repreendia. Fez beicinho como só ela sabia fazer.
- Deixa-a estar, anda à avó querida... - deixei-a deitar-se ao seu lado. Encostou a cabeça em seu peito, seus dedinhos desalinhando o cabelo da avó. Senti um ligeiro aperto no peito por presenciar aquela cena. Dei comigo a pensar que seria injusto para a minha filha mais alguém lhe ser roubado. Era uma probabilidade. Ana sabia que se eventualmente a doença reaparecesse não teria condição física de a combater, escapara à uma década atrás e dizia ser uma grande felizarda por isso. Na sua curta vida Sofia já sofrera a perda da mãe, de Marylin e agora da avó. Eram demasiadas perdas.
- Como se sente hoje? - perguntei-lhe
- Cansada... apenas cansada. Sabes Helder eu sempre estive à espera deste momento, nunca me convenci que iria sair completamente vencedora. Agora percebo que a doença entrou em remissão sim, mas porque eu tinha ainda algo a cumprir aqui na terra antes de partir. Eu tinha que estar ao lado dos últimos dias da minha filha, ver os primeiros passos da minha neta. Agora que a minha filha já partiu, a minha neta já não precisa tanto de mim, a minha doença resolveu reaparecer. Como se tivesse cumprido a minha meta aqui na terra.
- Ana, não diga uma coisa dessas. Vamos lutar, vamos fazer o que for possível para a ajudar. A medicina hoje em dia..
- Ah Helder eu não sei se tenho forças para lutar. Tu ainda não estavas na nossa vida quando passei a primeira vez por isto, não sabes o que dói veres o teu marido, filha a sofrer por te ver sofrer. Não sei se quero viver isso outra vez, não sei se quero.
- Mas tem o seu marido, neta, eles precisam de si... - argumentei eu - eu preciso de si!
- Meu querido tudo nesta vida passa, dói, mas a vida continua. E vocês poderão continuar com a vossa vida mesmo depois de eu partir.Chama-se lei da vida, por mais injusta que possa parecer.
Olhei-a nos olhos. Falava com convicção, mais emocional que racional. Olhei a minha menina que entretanto adormecera nos braços da avó. Estaria a vida a brincar comigo, um constante dá e tira? Um barulho chamou a minha atenção, Pedro chamava-me da entrada da porta. Levantei-me, deixei-as sós.
Estava com um olhar triste, ausente, seu cabelo em desalinho, expressão ausente, de quem não pregava olho desde que soubera a noticia. Sentamos no alpendre cá fora alheios à beleza que nos rodeava. O sol desaparecia por detrás da montanha, pincelando o céu de cores lindas. Em silêncio partilhámos aqueles momentos em que apenas o som da natureza ecoava em nós.
- Duro golpe hem? - iniciou ele a conversa
- Sim, não estávamos mesmo à espera. Que disse o médico em concreto? - perguntei-lhe
- Oh disse aquilo que não queríamos ouvir, que andámos a ignorar. Que reapareceu o tumor, que seria difícil de operar novamente. Aquelas conversas de médico quando sabe que não à mais nada a fazer. Ana recusa qualquer tipo de tratamento que acelere a sua partida ou diminua a sua qualidade de vida. Um amigo médico falou-me numa clínica em Londres onde costumam operar casos destes com êxito. Estou disposto a desfazer-me de tudo, desta casa, do que for necessário para tentar, mas ela não quer.
- Vai ver que ela vai acabar por ceder, vai ver que sim.
- Espero bem que sim Helder, não queria perder a minha mulher desta forma, não para este monstro que já a tentou levar uma vez....
Dei-lhe uma palmada no ombro em jeito de alento, em jeito de coragem. Olhámos ambos para o firmamento incertos do que nos esperava a seguir.
2 comments:
Esse monstro... Ladrão de vidas!...
Roubou-me o meu Pai... Sei bem o que a personagem sente!... Lindo... Transmites muito bem os sentimentos das personagens que até parece verdadeiro!...
Beijinhos ;P
A impotência perante a lei injusta da vida... Bonito!
Só dois reparos, se me permite:
penso que será "repreendi-a", em vez de "repreendia", na frase: "tentava a todo o custo saltar para o colo da avó".
E será: "quando sabe que não há mais nada a fazer."
Pequenos erros que nos escapam, acontece até aos melhores escritores. Para isso é que existem os revisores nas editoras :)
Continue a escrever!
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