Thursday, July 29, 2010

Flores no Cabelo



Ele passava por ela todos os dias. Ela vivia indiferente à sua presença. Todos os dias ela caminhava acelerada calçada fora, sempre olhando o relógio demonstrando que estava atrasada. Todos os dias ele esperava por ela, debaixo do toldo do café da esquina. Seu coração batia mais forte quando a avistava no inicio da rua. Passo apressado, sempre bem arranjada, telemóvel na mão, cabelo solto ao vento, seus caracóis caíam em grandes cachos ao redor do seu rosto. Nos seus caracóis o pormenor que mais o deliciava, as flores no cabelo. Pequenas, discretas tal como ela. Mas no seu todo produziam um efeito visual magnífico.
Ela passava por ele, nunca o via. Ou se via fingia não ver. Nunca os olhares se cruzaram, nunca por momento algum ela pareceu vê-lo dia após dia à sua espera. Um dia trouxera-lhe uma flor, ficou ali de flor na mão à sua espera. Mas nesse dia ela não viera. E ele ficou triste. Caminhou cabisbaixo até ao escritório, subiu as escadas. O mesmo frenesim de sempre o envolvia, pessoas a correr de um lado para o outro. Olhou para a secretária dela. Ela já lá estava, ficou surpreso. Dirigiu-se à sua própria secretária, a flor ainda na sua mão.
- Vens tarde hoje - comentou ela
Olhou-a estupefacto. Nunca trocaram uma palavra, ele pensava que ela nem sabia da sua existência.
- Hmmm - balbuciou... não conseguindo estruturar uma frase.
- Não te vi hoje na esquina. - comentou enquanto lhe piscava o olho - Que linda flor é para mim?
Ele olhou-a bem fundo nos olhos. Num gesto de atrevimento aproximou-se, pegou no gancho que lhe segurava uma madeixa de cabelo e prendeu lá a sua flor.
- Fica-te muito melhor uma flor natural! - disse ele ao mesmo tempo que soltava o caracol que segurava entre os dedos. - Porque nunca falas-te comigo antes?
- Porque só hoje quando passei por aquela esquina e não te vi lá, me apercebi que me fazias falta. A tua presença diária dá-me segurança, o teu olhar coragem. E aquela esquina nunca me pareceu tão triste como hoje, sem tu ali.
- Mas tu nem me vias. Passavas por mim e nem um bom dia.
- Ah mas eu via, vi-te todos os dias que esperavas por mim. Vi-te nos dias de sol, vi-te nos dias de chuva. Mas não te vi hoje. Onde estavas?
- Mas eu estive lá, como sempre à mesma hora.
Olhou para o relógio nervoso, que teria acontecido? Ele não se atrasara. Corou, sentindo-se envergonhado: - Esqueceu-me que mudava a hora! - confessou
Riram-se os dois. Ela convidou-o para um café, ele aceitou. Juntos desceram ao café da esquina.

Thursday, July 15, 2010

Momento: a duas vozes (parte XXV)

ELE

Um súbito telefonema de Ana deixou-me angustiado. A sua saúde já fragilizada com a perda da filha começava a piorar. A doença que julgáramos vencida estava agora em vias de voltar a atormentar-nos. Logo que me foi possível arranquei para casa dela. Sofia estava comigo. Incrível a capacidade que as crianças têm de se abstrair do que as rodeia, era como se a minha filha vivesse num mundo apenas dela, inconsciente do que se passava à sua volta. De certa forma era um alívio para mim. Se fosse porventura mais velha, faria com certeza mais perguntas, não entenderia porque a avó não queria brincar com ela, porque os seus olhos estavam negros e sem vida.
Sentei-me no sofá ao seu lado. No espaço de uma semana a mulher que eu sempre conhecera como forte, parecia um trapo velho amarrotado. Segurei-lhe a mão com carinho. Sofia no meu colo tentava a todo custo saltar para o colo da avó, repreendia. Fez beicinho como só ela sabia fazer.
- Deixa-a estar, anda à avó querida... - deixei-a deitar-se ao seu lado. Encostou a cabeça em seu peito, seus dedinhos desalinhando o cabelo da avó. Senti um ligeiro aperto no peito por presenciar aquela cena. Dei comigo a pensar que seria injusto para a minha filha mais alguém lhe ser roubado. Era uma probabilidade. Ana sabia que se eventualmente a doença reaparecesse não teria condição física de a combater, escapara à uma década atrás e dizia ser uma grande felizarda por isso. Na sua curta vida  Sofia já sofrera a perda da mãe, de Marylin e agora da avó. Eram demasiadas perdas.
- Como se sente hoje? - perguntei-lhe
- Cansada... apenas cansada. Sabes Helder eu sempre estive à espera deste momento, nunca me convenci que iria sair completamente vencedora. Agora percebo que a doença entrou em remissão sim, mas porque eu tinha ainda algo a cumprir aqui na terra antes de partir. Eu tinha que estar ao lado dos últimos dias da minha filha, ver os primeiros passos da minha neta. Agora que a minha filha já partiu, a minha neta já não precisa tanto de mim, a minha doença resolveu reaparecer. Como se tivesse cumprido a minha meta aqui na terra.
- Ana, não diga uma coisa dessas. Vamos lutar, vamos fazer o que for possível para a ajudar. A medicina hoje em dia..
- Ah Helder eu não sei se tenho forças para lutar. Tu ainda não estavas na nossa vida quando passei a primeira vez por isto, não sabes o que dói veres o teu marido, filha a sofrer por te ver sofrer. Não sei se quero viver isso outra vez, não sei se quero.
- Mas tem o seu marido, neta, eles precisam de si... - argumentei eu - eu preciso de si!
- Meu querido tudo nesta vida passa, dói, mas a vida continua. E vocês poderão continuar com a vossa vida mesmo depois de eu partir.Chama-se lei da vida, por mais injusta que possa parecer.
Olhei-a nos olhos. Falava com convicção, mais emocional que racional. Olhei a minha menina que entretanto adormecera nos braços da avó. Estaria a vida a brincar comigo, um constante dá e tira? Um barulho chamou a minha atenção, Pedro chamava-me da entrada da porta. Levantei-me, deixei-as sós.
Estava com um olhar triste, ausente, seu cabelo em desalinho, expressão ausente, de quem não pregava olho desde que soubera a noticia. Sentamos no alpendre cá fora alheios à beleza que nos rodeava. O sol desaparecia por detrás da montanha, pincelando o céu de cores lindas. Em silêncio partilhámos aqueles momentos em que apenas o som da natureza ecoava em nós.
- Duro golpe hem? - iniciou ele a conversa
- Sim, não estávamos mesmo à espera. Que disse o médico em concreto? - perguntei-lhe
- Oh disse aquilo que não queríamos ouvir, que andámos a ignorar. Que reapareceu o tumor, que seria difícil de operar novamente. Aquelas conversas de médico quando sabe que não à mais nada a fazer. Ana recusa qualquer tipo de tratamento que acelere a sua partida ou diminua a sua qualidade de vida. Um amigo médico falou-me numa clínica em Londres onde costumam operar casos destes com êxito. Estou disposto a desfazer-me de tudo, desta casa, do que for necessário para tentar, mas ela não quer.
- Vai ver que ela vai acabar por ceder, vai ver que sim.
- Espero bem que sim Helder, não queria perder a minha mulher desta forma, não para este monstro que já a tentou levar uma vez....
Dei-lhe uma palmada no ombro em jeito de alento, em jeito de coragem. Olhámos ambos para o firmamento incertos do que nos esperava a seguir.

Autoria: Lcarmo (Bela)
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Friday, July 9, 2010

Nas minhas mãos


"Peguei nele com cuidado. Maltratado e ferido, tal era o estado em que se encontrava. Com cuidado para não o magoar, desinfectei-lhe as feridas. Algumas eram feias e profundas. Havia algumas bem antigas, outras notavam-se ser recentes. Preocupou-me as mais recentes, pois ainda estavam frescas, ainda se notava que estavam expostas. Eram as que lhe doíam mais. Peguei nele nas minhas mãos, amparei-o. Falei com ele, expliquei-lhe que era inevitável as dores que sentia, que iria minimizar a sua dor o melhor possível. Parecia pequeno e frágil por fora. Mas por dentro eu sabia-o ser grande e forte. Apesar da facilidade com que abria feridas, não tinha noção por vezes da sua capacidade de se regenerar. Seus batimentos eram pausados, quase inaudíveis. Parei para escutar. Acaricei-o com gestos delicados, a sua fragilidade, a sua mágoa ali latente. Tentava ocultar a sua dor,  apesar da aparente jovialidade, se os outros olhassem bem para o fundo do seu ser veriam a mágoa que o consumia, que o desgastava. Fiquei ali com ele nas minhas mãos. Ainda o tenho nas minhas mãos, o meu Coração " Bela

Thursday, July 1, 2010

Uma noite...

Era uma noite escura. A rua encontrava-se silenciosa. Toda a gente já se recolhera nas suas casas. João caminhava sem rumo, aconchegou mais o casaco junto a si, sentia frio. Olhou em volta, procurando um lugar que lhe servisse de abrigo. O vento soprava forte fazendo-o aconchegar ainda mais o casaco  já velho e roto. De um eco ponto retirou um pedaço de cartão suficiente para lhe servir de colchão. Uma saliência no beco pareceu-lhe ser o local mais abrigado para poder dormir umas horas; horas suficientes até ao novo raiar do dia, até mais um dia na sua vida. A vergonha obrigava-o a viver assim na penumbra, escondendo-se dos outros. Deitava-se quando os outros já dormiam, levantava-se antes dos outros acordar. Assim ia "sobrevivendo", garantindo a sua subsistência com a mísera pensão de invalidez que recebia. Aconchegou-se em posição fetal adormeceu . A noite estava demasiado silenciosa como que antecipando um qualquer acontecimento fatídico.

O silêncio da noite foi quebrado pelo som de um disparo seguido de um grito estridente. Acordou sobressaltado tocando em todo o seu corpo com receio de ser sido alvo desse mesmo disparo. Não. Estava tudo bem consigo. Levantou-se. Os vizinhos começaram a assomar às janelas. Os gritos iam-se tornando cada vez mais próximos. Enchendo-se de coragem avançou tacteando no escuro. O seu coração batia descompassadamente. Os barulhos vinham do outro lado do prédio. Contornou a esquina camuflando-se na escuridão que envolvia o prédio. Espreitou.

O cenário era: um carro com as portas completamente abertas, uma jovem em lágrimas encolhida à mercê de um individuo na posse de uma arma de fogo. O individuo ameaçava-a, gritando. João olhou à sua volta, esperando que algum dos vizinhos que espreitavam por detrás das cortinas fizesse algo. A passividade de quem estava protegido no calor do lar tornava-os imunes ao que se passava na rua . Espectadores passivos da desgraça alheia. Olhou ao seu redor procurando algo que lhe pudesse servir de arma. Uma tábua de madeira largada no chão pareceu-lhe servir o seu propósito. Avançou por detrás do agressor. A jovem viu-o aproximar-se, seus olhares se cruzaram, ele silenciou-a com o olhar, evitando que ela denunciasse a sua presença. Pé ante pé avançou até estar próximo do homem que continuava a gritar com a jovem, ela cada vez se encolhia mais arrastando-se pelo chão. O cenário era horrível. O homem balbuciava palavras sem nexo, acusando-a de alguma coisa que João não entendia. Deviam viajar juntos no carro quando por qualquer motivo algo despoletou a fúria no homem. Uma relação passional? Mas ele parecia tão mais velho que ela.

Um gato atravessou o local a correr assustando os invervenientes na história. João deu um salto, largando a tábua que caiu ao chão causando um som estridente. O agressor voltou-se, ambos se olharam. Um arrepio percorreu João. A arma disparou atingindo-o no ombro. Caiu para o chão dando um grito de dor que ecoou na noite.
- "Que fizeste tu?" - gritou a rapariga correndo em auxilio de João
- "A culpa é tua, toda tua!" - gritava o marmanjo enquanto andava em círculos
- "Que vamos fazer agora? Precisamos de chamar uma ambulância! Liga para a emergência!"
- "Eu? Eu é que vou ligar? Eu vou é embora daqui!" - atirando a arma para um canto, entrou no carro e fugiu.
João e a jovem ficaram sozinhos. Ela chorava. Ele sentia guinadas de dores alucinantes.
- "Que vamos fazer? Oh que vou fazer?" - balbuciava ela enquanto olhava em volta
- "Vai ter que chamar alguém, por favor não me deixe aqui". - pediu ele.
Ela levantou-se, correndo para o prédio mais próximo tocando em todas as campainhas. Ninguém respondia. Insistiu mais uma vez. Ouviu-se uma voz pelo intercomunicador a perguntar o que queria.
- "Por favor, chame uma ambulância, é urgente, está uma vida em risco!".
- "Vou chamar, não saia daí que vou chamar".
A jovem foi para o lado de João. Ambos ficaram lado a lado até a ambulância chegar. Os paramédicos prestaram os primeiros socorros, precisava de seguir para um hospital. Colocaram-no dentro da ambulância, a jovem seguindo-os.
- "Posso ir consigo?" - perguntou ao João - "Não tenho para onde ir."
João aquiesceu. Em silêncio foram conduzidos pela cidade, a sirene da ambulância ecoando na noite. 

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: DISPAROU