Sunday, April 18, 2010

Momento: a duas vozes (parte XX)


ELA


"Desde pequena que sempre tivera um fascínio por aeroportos. Talvez porque tantas vezes acompanhara a minha mãe na espera das inúmeras viagens que o meu pai fazia. Sempre gostei de observar o vai e vem de pessoas, de entes queridos que se reencontram, de emoções à flor da pele. Mas hoje isso tudo me pareceu vago. Pela primeira vez na minha vida senti o peso da solidão nos meus ombros, que me fazia arrastar os pés literalmente aeroporto fora. Carregava comigo o peso da emoção de deixar para trás uma vida mais do que desejada. E partir assim sem uma despedida, sem um último abraço, sem um beijo. Ainda era cedo para fazer o check in. Sentei-me num banco. Uma vontade de chorar se apoderou de mim, mas consegui me controlar. Observei as pessoas que chegavam, procurando as pessoas que amavam com o seu olhar e senti-me muito pequena, insignificante até. Abri meu livro, precisava de me distrair com histórias de outros, para esquecer a minha própria história. Ler era o meu prazer maior. Aquele que me acompanhava nas noites frias de inverno, e nos dias quentes de verão. Enquanto lia abstraí-me completamente de tudo o que me rodeava. Era só eu e a história. E mais ninguém. Meu olhar percorreu mais uma vez aqueles rostos. Que procurava eu encontrar? Por uma vez na vida gostaria que a minha vida fosse um filme, daqueles que tanto chorei no cinema, enquanto as lágrimas me molhavam as pipocas. Desejei que ele me viesse esperar, fechei os olhos e consegui visualizar a cena na minha mente. Eu ali sentada, ele viria por trás de mim. Tocaria em meu ombro. Eu me viraria e me atiraria nos seus braços. Se ele me pedisse para ficar eu ficaria. Neste momento, aqui neste lugar, mais vulnerável do que nunca eu teria ficado se ele me pedisse. Nada mais me bastaria do sentir o seu abraço, o seu cheiro. Se a minha vida fosse mesmo um filme, eu a heroína, ele entraria por aquela porta para me vir buscar. E eu iria. Sem pensar no futuro, sem querer saber o que nos esperaria. Se fosse um filme, mas não era. Finais felizes cada vez mais só faziam sentido nos livros, nos filmes, nas músicas. A vida das pessoas era muito mais complicada do julgávamos, muitas vezes para se ter um final feliz, muitas pontas soltas ficariam. Senti de repente um toque no ombro. Senti-me estremecer. Virei-me feliz meus olhos procurando os olhos que tanto amavam. Mas não foram esses olhos que tanto queria que me olharam de volta. Senti-me desolada.

- Miguel? - perguntei como para me certificar que não estaria a sonhar

- Então pronta para a viagem? - perguntou sorrindo.

- Vieste despedir-te? - perguntei a medo. Meu olhar pousou na mala dele. Por momentos não quis acreditar no que via. Não podia ser verdade pois não?

- Eu vou no mesmo avião que tu, aliás vamos lado a lado. Achas que te ia deixar ir sozinha? Vou-te orientar nestas primeiras semanas.

O meu olhar devia denotar a desilusão que sentia por dentro. Era impossível ele não ter notado como os meus olhos escureceram, ficaram negros, tal e qual a cor que morava dentro de mim.

- Supresa? - perguntou-me.

- Sim. Não esperava que também fosses.

- Vou para dar as primeiras orientações. Depois volto. Mas nos primeiros tempos vamos trabalhar perto um do outro.

Olhei para ele. Não sorri. Não me agradava a ideia. Suspeitava que por detrás deste seu acto estaria algum interesse que eu ainda não descortinara qual. Não me sentia segura na sua presença. Ele assustava-me. E eu não gostava de mim quando estava perto dele. A minha vontade foi dar meia volta e sair dali o mais rápido possível mas não o fiz, fiquei ali especada a olhar para ele, enquanto a minha mente me bombardeava com perguntas. Senti-me desfalecer. Ele agarrou-me a tempo de evitar que caísse. Mal senti suas mãos me tocarem estremeci, bruscamente gritei-lhe: - Larga-me! Não te atrevas a tocar-me! - gritei furiosa. largou-me de imediato. Arrependi-me de ter sido tão brusca, afinal tinha evitado que caísse e me magoasse, mas só de imaginar que me tocassem, repugnava-me a ideia.

Caminhamos juntos para o check- in. Mais uma vez olhei para a entrada à espera de um milagre. Mas o silêncio do Helder tudo me dizia, por vezes o silêncio das pessoas dizem muito mais do que a gente pensa. Basta saber interpretar. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, prometi que seria a última lágrima, pelo menos para hoje. E com o coração partido, pois uma parte de mim ficou naquele aeroporto, parti em direcção ao meu destino."


Autoria: Lcarmo (Bela)

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Wednesday, April 14, 2010

Carta a uma filha


imagem daqui


"Ainda não nasceste. Aliás cada dia que passa acho que isso está longe de acontecer. Mas imagino-te. Poderia descrever ao pormenor o teu rostinho alegre e sorridente, esses teus olhos castanhos que me fazem lembrar duas amêndoas. Fecho os olhos, imagino o que seria sentir o teu corpo pequenino junto ao meu, o teu cabelinho ondulado pelos ombros. Irrequieta, de natureza afável é assim que tu és. A mais amorosa das meninas, mas também a mais teimosa, mais perseverante. Fazes-me lembrar tanto eu quando tinha a tua idade. Gosto daqueles momentos em que sentadas na cama, eu te leio as histórias que me fizeram sonhar e que quero dividir contigo. Quero que tenhas a mesma capacidade que eu para sonhar, porque a vida sem sonhos é uma vida vazia, não quero isso para ti. Imagino aqueles nossos passeios de mão dada a beira mar, ambas descalças sentindo a areia por entre os nossos dedos, a água gelada que nos causa arrepios de frio. O som do nosso riso a ecoar na paisagem é claro e cristalino. Abraço-te. Abraças-me. Ficamos por tempo indeterminado ali juntas, a nossa cumplicidade latente em todos os nossos gestos. Fazes-me perguntas, perguntas características da idade para as quais às vezes tenho que improvisar respostas. Gosto daqueles dias em que dividimos as pipocas no cinema, dando gargalhadas a ver uma comédia qualquer. Ou os dias em que simplesmente ficamos as duas de pijama o dia todo em casa, enroscadinhas no sofá com uma mantinha em alegres conversas e partilhas. Gosto quando me olhas nos olhos e dizes - me "Gosto de ti, mãe" as lágrimas escondem-se por detrás do sorriso com que te brindo. Também te amo muito, mesmo sem ainda teres nascido já amo a ideia de ti. Mais do que me preocupar em ter um pai para ti, preocupa-me não te ter a ti. Pudesse eu ter uma coisa sem ter a outra. Sim sei que é egoísta da minha parte, todas as crianças precisam de um pai, mas e aquelas mães que querem tanto sê-lo e ainda não apareceu o Pai? Por isso minha querida, vivo na ilusão de um dia permitir que nasças, que entres na minha vida e me mostres o verdadeiro amor incondicional. Porque o outro esse já o conheço, mas o amor de mãe e filha esse ainda quero experimentar. Tenho sido paciente. Tu também, sei que estás ansiosa por conhecer o mundo, adquirir todos estes conhecimentos, deixares-te absorver pelos livros que tenho para contigo partilhar. Mas seremos pacientes, as duas, até ao dia que o teu Pai nos encontrar. Bela"



Sunday, April 11, 2010

Momento: a duas vozes (parte XIX)


ELE


"Deambulei sem destino por uma data de horas. Estava literalmente perdido, desnorteado. Estava a ser cobarde e sabia-o. Estava a empurrar literalmente Marylin para fora da minha vida. Era mesmo isso que eu queria? Não seria preferível tê-la, nem que fosse por algum tempo ausente, do que não tê-la de todo? O telefone tocou. Era Ana. Atendi.

- Sim Ana.

- Onde estás? - onde estava eu? olhei à minha volta, estava sentado num banco de jardim no centro da cidade. Nem me dei conta de como lá fui parar. Não tinha memória sequer de ter pegado no carro.

- Estou no centro - respondi-lhe

- Não achas que devias fazer alguma coisa em relação a Marylin? - perguntou-me. Devia não devia? Então porque não o fazia?

- Ana eu preferia não discutir esse assunto.

- Ela esteve aqui Hélder, ela está desesperada com esta tua atitude. Quer-me parecer que não é uma atitude de homem, se me permites a franqueza. Ela não cometeu nenhum crime para a tratares assim, se lhe deres oportunidade de justificar os seus motivos de certeza que verias as coisas com outros olhos.

- Eu já disse que não quero falar nesse assunto - respondi áspero.

- Tu é que sabes. A vida é tua, o amor é teu, a dor será tua. Só telefonei para te avisar que o voo dela é ao fim da tarde, às 18:30 se quiseres remediar a situação, faz-te ao caminho. Faz o que é certo tu fazeres. Não vou dar conselhos porque já és homem suficiente para saberes o que queres. Mas para que fique claro não concordo com a tua postura.

- Ana prefiro que não se meta nesse assunto.

Desliguei o telefone. Estava farto que me dissessem o que devia ou não devia fazer. Eu é que sabia da minha vida, da minha dor. Olhei para o relógio. Passava pouco das 16. Se me apressasse poderia chegar a tempo de me despedir dela, ou de não a deixar partir. O meu coração começou a bater mais rápido perante essas possibilidades. Ir ou não ir? Se fosse poderia ao menos vê-la mais uma vez, dar-lhe um último beijo até ao próximo reencontro. Era tão fácil eu pegar no carro e ir até lá. Surpreendê-la. Dizer-lhe que a amava, que esperaria por ela. E eu sabia que no fundo esperaria o tempo que fosse necessário. Era a mulher que eu amava, mais nenhuma conseguiria me fazer sentir o que sentia novamente. Levantei-me e caminhei apressado para o carro. Afinal sempre sabia onde o tinha estacionado. Senti-me nervoso, ansioso, mas feliz por ter tomado essa decisão. Olhei para o relógio. Ainda dava tempo, não dava? Com estes pensamentos na cabeça fiz-me à auto-estrada. Não me lembro do caminho, apenas me lembro da velocidade a que ia. Se estivesse algum carro-patrulha algures escondido provavelmente iria me dar mal. Mas naqueles minutos nada disso me importou. Queria vê-la, beijá-la, dizer-lhe que a amava. Que tudo ia ficar bem, que iria visitá-la quantas vezes fosse necessário. Ela mais do que nunca precisava do meu apoio, e eu já não conseguia viver sem essa mulher. Cheguei ao aeroporto em menos de meia hora. Corri para a zona do check in. Meu olhar percorreu todos os rostos que ali estavam. E não eram poucos. Procurava o meu rosto, aquele rosto tão familiar que conhecia os contornos com infímo pormenor, aqueles olhos onde me perdia, aquela boca da qual nunca ficava saciado. Não a via. Uma desolação se apoderou de mim. Teria percebido mal as horas? Seria tarde demais? Quem me visse devia pensar que eu seria um lunático que corria a zona de um lado ao outro. E eu estava realmente fora de mim. De repente via-a. De costas para mim. Corri para lá. Abracei-a. Virei-a para mim. Surpreso larguei a pessoa que abraçava. Não era ela. Balbuciei um desculpe e afastei-me envergonhado. Senti-me desolado. Com os ombros encolhidos pelo desânimo decidi me vir embora. Era tarde demais. Caminhava para a saída, aliás já estava praticamente na saída quando o meu olhar pousou numa zona de cadeiras onde se encontravam pessoas sentadas. Reconhecia-a de imediato. Sentada com um livro no colo lia atentamente. Havia algo de tão belo naquela imagem que me controlei para não chorar. Seu cabelo caía em cachos. Folheava o livro com cuidado, tão característico nela. Estava completamente ausente, longe do que a rodeava, provavelmente sua mente num mundo apenas dela, e da história que lia. Senti-me invadir uma felicidade sem tamanho. Caminhei em sua direcção. Iria poder dizer-lhe o que estava preso na minha garganta. Um vulto se aproximou dela, tocou-lhe ao de leve no ombro. Reconheci de imediato esse vulto. Ela mostrou um ar surpreso, até ligeiramente desiludido. Eu parei. Parei ali naquele limiar entre o ir e não ir. A felicidade de há momentos esfumara-se. Olhei mais uma vez para a mulher que amava, tão perto e tão longe. Virei as costas e vim-me embora. "

Autoria: Lcarmo (Bela)
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Tuesday, April 6, 2010

Momento: a duas vozes (parte XVIII)

imagem daqui

ELA


"Helder continuava sem me atender o telefone. Perdi a conta das chamadas que fiz, das mensagens que enviei. Fui para casa preparar a mala. Não era fácil fazer-se uma mala assim sem planos de regresso. Mecânicamente lá enfiei alguma roupa, não estava muito preocupada em escolher o que levar. Nada me importava. Sentei-me na beira da cama, olhei para o espelho que me retribuía uma imagem desoladora. Olheiras enormes, cabelo em desalinho. E se fosse procurá-lo? Podia ir a casa de Ana, ver se ele se encontrava lá. Pois podia. Sem pensar duas vezes, decidi ir. Quando dei por mim já me encontrava à porta da casa da Ana a tocar à campainha. Foi ela que veio abrir a porta.

- Olá - balbuciou surpreendida por me ver

- Olá Ana, o Helder está por aí? - perguntei ansiosa

- Não. Ele esteve aqui de manhã, deixou a menina, mas ainda não regressou.

- Ah. - ficamos ali as duas sem saber que dizer uma à outra.

- Não quer entrar? - convidou a Ana - Eu ia mesmo tomar um chá, faz-me companhia?

- Sim faço. - precisava mesmo de beber alguma coisa, com o meu estado de ansiedade não fazia uma refeição desde ontem.

Fomos para a salinha de estar, onde me sentei num dos sofás. Perguntei por Sofia, Ana disse-me que tinha ido ao parque com o avô.

Ana foi à cozinha. Fiquei ali sozinha, meu olhar deambulando pelos retratos de Mariana que decoravam a sala. Senti-me a invadir um espaço que não era meu. Ana voltou rapidamente, livrando-me de uma série de pensamentos que me começavam a inquietar. Em silêncio serviu.nos a ambas. O chá cheirava mesmo bem, a jasmim. Ficamos ali sentadas, cada uma embrenhada nos seus próprios pensamentos. Ana foi a primeira a interromper o silêncio.

- Eu não tenho o direito de me imiscuir na vossa vida, mas estou certa de que algo se passa. Helder hoje estava transtornado, tão transtornado como no dia em que a minha filha partiu. Eu sei que não fui correcta contigo no inicio, espero que me perdoes, mas era o coração de mãe a falar mais alto. Eu olhava para ti e imaginava que podias ser a minha filha entendes? - Aquiesci, sentindo um nó na garganta. As lágrimas escorriam dos meus olhos. Senti-me frágil, exposta. - Deu para entender que alguma coisa se passou. Não sei o quê, helder não me contou, mas pelo vosso estado dá para ver que vos está literalmente a empurrar para caminhos opostos. E sinceramente não gostaria de ver isso. Não depois de ter visto o que a tua presença fez á vida da minha neta e do Helder. Foste uma lufada de ar fresco, foste o ar que eles precisavam para respirar. E mesmo tendo a minha dor de mãe ainda muito latente, tenho consciência de que neste momento tu saíres da vida deles seria um desastre total. Eu gosto muito do Helder, temos as nossas diferenças, mas nunca em momento algum o achei culpado do que aconteceu a mariana. Foi uma fatalidade. Podia ter acontecido muito mais tarde. E sinceramente quero que ele consiga a estabilidade que tanto precisa, para criar a menina, porque é muito complicado criar-se um filho sozinho. Estes últimos dias tomei consciência de que tu eras mesmo o que ambos precisam. Estou enganada?

Olhei-a nos olhos. Por entre os meus olhos encharcados de lágrimas mal a conseguia ver. Ela abriu-me os braços e eu deixei-me abraçar. Ainda chorei mais pois lembrei-me da minha própria mãe. Não sei por quanto tempo chorei, Ana foi paciente não me apressou. Então abri meu coração para ela. Falei-lhe do que me ia na alma, da minha mãe, da ida para Londres, do quanto queria dividir minha vida com o Helder e a Sofia. Ela ouviu-me. Até ao fim. Não me interrompeu. E eu senti-me melhor por tirar este peso dentro de mim. As lágrimas cessaram por elas mesma, o coração sentiu-se menos angustiado.

- Ana, eu tenho que ir. - olhei-a nos olhos - A Ana entende, não entende?

- Não esperaria outra coisa de ti. Esta tua atitude só veio reforçar a ideia que vinha moldando de ti. És alguém consciente dos seus valores morais, e neste momento a pessoa que mais depende de ti, quer queiras quer não, é a tua mãe. E estás a fazer o que é correcto. Claro que estás a pagar um preço demasiado caro para teres essa postura, mas minha querida, a vida é assim mesmo. Dá-nos com uma mão, tira com a outra. Não vês o meu caso? perdi a minha filha, mas ganhei uma neta. Nem tudo é mau, nem tudo pode ser mau. Quanto ao Helder, ele é muito temperamental. Destruíste-lhe os sonhos que ele andava a sonhar para ti e para Sofia. Vai demorar algum tempo a ele se consciencializar de que ás vezes temos que tomar o rumo de algumas estradas secundárias para podermos regressar à estrada principal. Sim são atalhos. Desvios. Mas que depois mais à frente se voltam a cruzar. Não me quer parecer que ele esteja em condições de abdicar de um amor assim, não depois do que passou. Mas vais ter que lhe dar tempo. Vai para Londres, segue o teu curso de vida. Ele vai cair em si, no dia em que acordar e se der conta que estás longe. Então aí terá que ser ele a fazer uma escolha, o de lutar por ti, ou ficar de braços cruzados. Faz de conta que é um intervalo na vossa relação do qual a mesma só terá que sair fortificada. O meu instinto diz-me que sim. Mas podes estar descansada ainda vou falar com ele sobre isso. Quem sabe ele não concorda em ir contigo, eu fico com a menina. Para tudo há solução nesta vida, menos para a morte. Convém nunca se esquecerem disso. E mortes já houve que chegue nesta família.

Acariciou-me o cabelo, enquanto me dava um beijo meigo na testa. Senti-me muito reconfortada pelas palavras desta senhora também ela já tão sofrida. Esbocei um sorriso de agradecimento. Não eram necessárias palavras pois não? Era chegada a hora de eu ir embora, queria evitar ver Sofia para evitar a dor da despedida. Agradeci-lhe mais uma vez, o facto de me abrir o seu coração daquela forma e saí de lá confiante de que se haveria alguém capaz de abrir os olhos ao Helder, seria ela com certeza. Entrei no carro e fui para casa terminar de fazer a minha mala."

Autoria: Lcarmo (Bela)

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Thursday, April 1, 2010

Sonho

imagem daqui

"Todos os dias tinha o mesmo sonho. Encontrava-se descalça, olhando para o precipício. Não sabia como fora ali parar, o olhar vagueava ao seu redor. Encontrava-se só, apenas ela e o abismo que a parecia querer engolir. Havia algo de aliciante na forma como o abismo chamava por si, convidando-a a aninhar-se nos seus braços. E como precisava de sentir-se novamente abraçada. A cada dia se acercava mais do precipício. Se no seu sonho aparecesse uma ligeira brisa, seria o suficiente para a fazer perder o equilíbrio. Mas não existia brisa, não existia som, não existia outras pessoas. Apenas ela e o abismo que chamava, sussurrava-lhe ao ouvido" Anda, anda. Dá-me a tua mão." Mas ela não ia. Alguma força estranha fincava os seus pés no solo árido, mesmo sentindo-se aliciada não se conseguia soltar. Suor escorria-lhe pelo rosto, o cabelo desalinhado, molhado. A sua camisa de noite moldava-se ao seu corpo. A imagem tinha algo de sensual, erótico até. As formas do seu corpo eram reveladas pela transparência da camisa. Não se sentia exposta, pelo contrário, sentia-se sedutora. Encarava o abismo que a chamava com um amante que a seduzia, não com palavras, mas com gestos. E ele continuava a tentar seduzi-la. E se saltasse? Acordaria deste sonho? Sempre que estava na iminência de saltar o sonho terminava com ela dando um grito estridente, molhada em suor, enquanto os seus olhos se ajustavam à escuridão. Se saltasse mudaria o curso do sonho? O que a faria sentir? O que a impedia de saltar? Chegou-se mais perto, ligeiramente. Olhou para o fundo. Não via nada. Se ao menos visse alguma coisa, soubesse o que a esperava lá no fundo, poderia escolher saltar ou não. E se esperasse que o destino decidisse se era para ela saltar ou não? Recuou um passo atrás. Não. Não ia deixar mais nada nas mãos do destino. A escolha desta vez seria apenas dela. Mais uma vez avançou destemida, decidida. "Chama por mim outra vez" - pediu. "Anda, anda" - a voz ecoou lá do fundo - "Porque não vens?". Porque não ia? Enchendo-se de coragem, saltou. Acordou assustada, sentindo que tinha finalmente tido coragem de saltar. Esboçou um sorriso. Mas afinal então o que a esperava no abismo que a engoliu? Olhou ao seu lado, visualizou um corpo nu ao seu lado. Belo, esculpidamente belo. Perfeito. A luz da aurora matinal entrava pelas frinchas da persiana, desenhando contornos sensuais no corpo. Tocou-lhe ao de leve. Sim era real. Ao fim de meses com o mesmo sonho que a impedia de saltar, finalmente saltara. Tinha decidido saltar para o abismo no momento em que o conhecera. Agora sim o seu sonho fazia sentido. Até aqui não saltara porque ele não estaria lá no fundo ao lado dela. E agora estava. Sentiu-se feliz, encostou seu corpo suado ao dele, beijou seus lábios e aninhando-se no seu abraço adormeceu. Desta vez sem sonhos com o abismo, pois finalmente se deixara possuir pelo abismo da vida e do amor que a engoliram."

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio do mês de Abril para o Blog Fábrica de Letras