Wednesday, May 4, 2011

As tranças

A menina sentada no banquinho de madeira esperava impaciente que a senhora lhe penteasse os longos cabelos. Aquele ritual diário era a delicia da pequena petiz. Ansiosamente esperava por sentir o toque das mãos nos seus cabelos desfazendo os nós que teimavam em aparecer. A senhora gostava muito de tranças, todo o género de tranças e a menina gostava que ela gostasse de lhe fazer as tranças. A cumplicidade daqueles momentos era exclusivamente delas, e a menina deliciava-se com isso, chegando a esquecer que aquela não era a "sua família", que tinha outro pai, outra mãe, outra vida para além daquela.... Era o único momento do dia em que a atenção da senhora recaía exclusivamente sobre si e não teria que a dividir com o seu primo travesso que andava sempre por ali.
O riso do menino ecoava pela casa toda, mostrando impaciência perante o facto de a menina perder tanto tempo "com coisas de menina".
A casa transbordava de risos e correrias, tarefa esgotante essa de controlar dois pequenos seres ávidos de aventuras e loucuras. Com mãos firmes, sorriso afável, fazia a delicia da petizada e o seu lugar no coração de ambos ficaria cravado para todo o sempre.

Ser-se mãe é dedicar-se um amor incondicional mesmo que não tenham sido gerados no seu ventre. Aquela menina do banco de madeira e das tranças negras  era eu e tive duas mães e uma delas acabou de me deixar... 

E continuo a gostar de tranças e que me toquem no cabelo.... 

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: Mãe

Tuesday, March 8, 2011

Recomeço....

O silêncio da noite quebrou-se com o barulho de uma porta a bater. O som das vozes ecoaram pela casa toda fazendo estremecer os seus alicerces. Miguel acordou sobressaltado. Olhou em seu redor , ao seu lado a sua irmã dormia sossegada. Pé ante é saiu do quarto, os seus pés descalços contorceram-se ao tocar o chão frio. As vozes vinham do fundo do corredor, mais propriamente do quarto dos pais. Avançou apreensivo tacteando no escuro, medindo os seus passos de forma a não tropeçar em algum objecto estranho. Apenas se ouvia a voz do seu pai, áspera, dura. Voz essa dominada totalmente pela bebida que o mantinha escravo de uma situação já de si incontrolável. Engolindo em seco entreabriu a porta, viu o seu pai agarrar a sua mãe pelos cabelos ao mesmo tempo que a obrigava a olhá-lo nos olhos. O cansaço, tristeza no olhar da sua mãe fez o seu coração encolher-se de medo. Naquele momento desejou ser mais velho, desejou que os seus seis anos se multiplicassem, desejou estar à altura de olhar o seu pais nos olhos e dizer-lhe o quanto o odiava. A sua mãe chorava, mas Miguel conhecia bem aquelas lágrimas, naquele momento eram de dor, mas no dia seguinte ela esqueceria as lágrimas, esqueceria as nódoas negras e negaria que aquilo alguma vez ocorrera. Sentou-se no chão do corredor, os soluços tomando conta do seu pequeno corpo. Os gritos continuavam mais e mais, já nem os vizinhos acorriam porque cansaram-se de chamar a policia e de verem que a sua mãe no dia seguinte retirava a queixa. A bebé no quarto começara a chorar. Correu apressado, para a tentar sossegar.
- shhhh não chores pequenina, o mano está aqui. Não chores senão ele vem... não chores por favor. - Miguel sentia-se responsável por aquele pequenino ser. A bebé sentindo o aconchego do colo sossegou, as lágrimas deixaram de rolar. Num esgar de coragem, pousou a menina na cama. Agarrou na sua mochila da escola esvaziando todo o seu conteúdo no chão. Encheu-a de roupa da bebé, partiu o mealheiro de onde retirou as parcas poupanças que tinha e mantinha escondidas dos pais. Vestiu-se apressado, ao mesmo tempo que sufocava os soluços dentro do seu peito. O pânico começava a crescer dentro dele, que iria ele fazer? Sair para a noite fria com uma bebé de meses? Suspirou fundo, tudo era preferível a mais uma noite naquela casa, a mais um dia daquele terror. Abriu a porta da rua, o frio da noite envolvendo-os num gentil abraço. Estremeceu não de frio, não de medo, estremeceu de alívio perante uma vida que o esperava fora daquela casa. A sua irmã ressentiu-se do frio, manifestando um ligeiro queixume, aconchegando mais o seu corpinho contra o seu sussurrou-lhe:
- O mano vai tomar conta de ti, o mano vai... - disse convicto. E avançaram os dois pela noite adentro, incertos do destino que os esperava ao virar da esquina....

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: Violência

Wednesday, February 9, 2011

A sua loucura

"Olhavam-na de soslaio. Sentia o olhar deles em cada centímetro do seu corpo, os pêlos da nuca eriçavam-se à sua passagem por eles. Sorriam-lhe, aquele sorriso amarelo típico de quem estava a falar mal e é apanhado no acto. Havia os que a condenavam à loucura de forma muda, sem pronunciar as palavras que lhes corriam pela mente. Depois havia os descarados que perguntavam directamente onde ela estava com a cabeça para agora naquela idade lembrar-se disso. 
Ela apenas sorria, não devia satisfações a ninguém. No entanto não deixava de achar sedutor aquela dose de loucura que a possuía e a fizera dar um passo em frente. Farta do marasmo da sua vida, arregaçou as mangas e deu um pontapé no sofá que teimava em mantê-la prisioneira. Sentia-se livre, tão livre quanto um passarinho quando lhe deixam a porta da gaiola aberta: só lhe apetecia voar. Mas esta sua loucura andava na boca dos que não tinham coragem de mudar, dos que dia-a-dia se afogavam em dores de cotovelo por quem resolve contrariar o que a sociedade pré-estabelece. 
Ela rebelde, cedera à loucura contrariando relógios biológicos, cansada de esperar por alguém que não chegava. Quem estaria mais errado? Quem seria mais louco? Ela que escancarara a porta em busca de algo que a completasse ou quem segue religiosamente o que a sociedade estabelece, não cabendo lugar à tolerância por quem escolhe ser diferente? Sim era louca, mas uma loucura doce, sedutora, e sentia-se grande por ter tido coragem de mudar."

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: Loucura

Tuesday, January 4, 2011

O Regresso

Transpôs a porta do café de mão dada com o menino. Agarrou-se com mais firmeza aos pequeninos dedos que se encaixavam nos seus. Uma rajada de vento acompanhou a sua entrada provocando o tilintar dos copos pousados sobre o balcão. O murmúrio habitual cedeu a um lugar a um silêncio quase sepulcral. Mil olhos pousaram sobre os seus ombros, seu coração batia tanto tão forte que receou sucumbir ali mesmo. Acercou-se do balcão. Uns olhos castanhos, frios, devolveram o seu olhar.
- Era uma meia de leite se faz favor. E uma nata. - pediu educada.
Nada.  Um simples virar de costas foi a resposta que obteve. Sentiu um leve sussurrar nas suas costas. Virou-se. Alguns olhares cruzaram os seus, outros culposos escaparam-se a esse contacto. Num gesto carinhoso afagou os cabelos do menino. Fingiu que os sussurros não chegavam até si, filtrados pela sua percepção.
"Ouvi dizer que não se sabe quem é o Pai..."; "Veja lá comadre, saiu daqui para estudar e agora volta com um filho nos braços, deve ter estudado muito deve!"...
Engoliu em seco. Sempre as mesmas censuras, sempre o preconceito latente em todos os seus passos. Ainda nem há dois dias chegara e já tinha vontade de fugir, Fugir, escapar aos olhares recriminadores de quem sempre se julgou imune aos infortúnios da vida. Telhados de vidro que a qualquer momento poderiam quebrar mas aos quais todos eram alheios. Sempre era e será bem mais gratificante de se falar da vida dos outros não era? Voltara sim mas contrariada. Se não fosse devido à doença de sua mãe nunca teria colocado os seus pés em terrenos como aquele. Conteve a lágrima que teimava em inundar-lhe a vista. Sentiu-se sufocar. Pegou no menino ao colo, aconchegando-o mais ao seu corpo, tentando a custo protegê-lo dos olhares inundados de maldade.
- Não vás. - uma voz ecoou atrás de si ao mesmo tempo que uma mão tocava no seu ombro. Virando-se lentamente reconheceu os olhos doces do José, seu amigo de infância e que agora era o Pároco da aldeia . Sorriu timidamente, sentindo-se culpada pela quebra de laços, pelo interromper dos afectos tão abruptamente, pela fuga da vida que a esperava ali. Mas não encontrou recriminação de espécie alguma naquele olhar, apenas o conforto de uma alma que não se quer pura, mas sim livre de preconceitos, de julgamentos precipitados. Tirou-lhe o menino dos braços, obrigando-a segui-lo para uma mesa mais ao fundo.
- Penso que a Adriana tenha feito um pedido, Maria. Ou estás demasiado ocupada para atender? - disse o Padre José enquanto se acercava do balcão.
- Já vou Sr. Padre - disse Maria correndo para atender o seu pedido.
Dirigindo-se à plateia que o observava em silêncio apenas disse:
- O bom paroquiano, temente a Deus, é aquele que não julga o acto dos outros, é aquele que não recrimina sem se inteirar da veracidade dos factos. Simplesmente há verdades que apenas aos próprios dizem respeito e não têm que ser partilhadas com ninguém. Espero que o que se passou aqui hoje, seja apenas um episódio solto, fruto da vossa aguçada curiosidade e cada um se preocupasse com a sua própria vida e não com a vida de outrem.

Ninguém lhe respondeu. Por vezes o silêncio é a resposta possível.

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: Preconceito