Thursday, July 1, 2010

Uma noite...

Era uma noite escura. A rua encontrava-se silenciosa. Toda a gente já se recolhera nas suas casas. João caminhava sem rumo, aconchegou mais o casaco junto a si, sentia frio. Olhou em volta, procurando um lugar que lhe servisse de abrigo. O vento soprava forte fazendo-o aconchegar ainda mais o casaco  já velho e roto. De um eco ponto retirou um pedaço de cartão suficiente para lhe servir de colchão. Uma saliência no beco pareceu-lhe ser o local mais abrigado para poder dormir umas horas; horas suficientes até ao novo raiar do dia, até mais um dia na sua vida. A vergonha obrigava-o a viver assim na penumbra, escondendo-se dos outros. Deitava-se quando os outros já dormiam, levantava-se antes dos outros acordar. Assim ia "sobrevivendo", garantindo a sua subsistência com a mísera pensão de invalidez que recebia. Aconchegou-se em posição fetal adormeceu . A noite estava demasiado silenciosa como que antecipando um qualquer acontecimento fatídico.

O silêncio da noite foi quebrado pelo som de um disparo seguido de um grito estridente. Acordou sobressaltado tocando em todo o seu corpo com receio de ser sido alvo desse mesmo disparo. Não. Estava tudo bem consigo. Levantou-se. Os vizinhos começaram a assomar às janelas. Os gritos iam-se tornando cada vez mais próximos. Enchendo-se de coragem avançou tacteando no escuro. O seu coração batia descompassadamente. Os barulhos vinham do outro lado do prédio. Contornou a esquina camuflando-se na escuridão que envolvia o prédio. Espreitou.

O cenário era: um carro com as portas completamente abertas, uma jovem em lágrimas encolhida à mercê de um individuo na posse de uma arma de fogo. O individuo ameaçava-a, gritando. João olhou à sua volta, esperando que algum dos vizinhos que espreitavam por detrás das cortinas fizesse algo. A passividade de quem estava protegido no calor do lar tornava-os imunes ao que se passava na rua . Espectadores passivos da desgraça alheia. Olhou ao seu redor procurando algo que lhe pudesse servir de arma. Uma tábua de madeira largada no chão pareceu-lhe servir o seu propósito. Avançou por detrás do agressor. A jovem viu-o aproximar-se, seus olhares se cruzaram, ele silenciou-a com o olhar, evitando que ela denunciasse a sua presença. Pé ante pé avançou até estar próximo do homem que continuava a gritar com a jovem, ela cada vez se encolhia mais arrastando-se pelo chão. O cenário era horrível. O homem balbuciava palavras sem nexo, acusando-a de alguma coisa que João não entendia. Deviam viajar juntos no carro quando por qualquer motivo algo despoletou a fúria no homem. Uma relação passional? Mas ele parecia tão mais velho que ela.

Um gato atravessou o local a correr assustando os invervenientes na história. João deu um salto, largando a tábua que caiu ao chão causando um som estridente. O agressor voltou-se, ambos se olharam. Um arrepio percorreu João. A arma disparou atingindo-o no ombro. Caiu para o chão dando um grito de dor que ecoou na noite.
- "Que fizeste tu?" - gritou a rapariga correndo em auxilio de João
- "A culpa é tua, toda tua!" - gritava o marmanjo enquanto andava em círculos
- "Que vamos fazer agora? Precisamos de chamar uma ambulância! Liga para a emergência!"
- "Eu? Eu é que vou ligar? Eu vou é embora daqui!" - atirando a arma para um canto, entrou no carro e fugiu.
João e a jovem ficaram sozinhos. Ela chorava. Ele sentia guinadas de dores alucinantes.
- "Que vamos fazer? Oh que vou fazer?" - balbuciava ela enquanto olhava em volta
- "Vai ter que chamar alguém, por favor não me deixe aqui". - pediu ele.
Ela levantou-se, correndo para o prédio mais próximo tocando em todas as campainhas. Ninguém respondia. Insistiu mais uma vez. Ouviu-se uma voz pelo intercomunicador a perguntar o que queria.
- "Por favor, chame uma ambulância, é urgente, está uma vida em risco!".
- "Vou chamar, não saia daí que vou chamar".
A jovem foi para o lado de João. Ambos ficaram lado a lado até a ambulância chegar. Os paramédicos prestaram os primeiros socorros, precisava de seguir para um hospital. Colocaram-no dentro da ambulância, a jovem seguindo-os.
- "Posso ir consigo?" - perguntou ao João - "Não tenho para onde ir."
João aquiesceu. Em silêncio foram conduzidos pela cidade, a sirene da ambulância ecoando na noite. 

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: DISPAROU


29 comments:

Louise said...

Já agora gostava de ver a continuação desta história...
Estava a ser muito interessante.

chica said...

Ficou linda tua participação! Empolgante! abração,chica

Ginger said...

Este merece uma part II. ;)


*

Ricardo Fabião said...

Poetic,
agora terás que continuar a história do João...
ficamos todos curiosos, de corações 'disparados'.

Narrativa envolvente, cativante.

Beijos.
Ricardo

Sandra said...

UMA MNAEIRA BEM ESPECIAL DE SER E SE MANIFESTAR.
ESTOU TAMBÉM PARTICIPANDO...
UM TEMA BELO, MAS QUE PARA MIM É TRISTE. REGISTREI NA INTERAÇÃO A MINHA TRISTEZA PELOS DISPAROS. A VIDA É UMA INCOGNITA. ASSIM COMO NA CURIOSA..DEIXO O REGISTRO NA INTERAÇÃO..
http://sandrarandrade7.blogspot.com/

UM GRANDE ABRAÇO AMIGA.
SANDRA

A Loira said...

E no fim, o único que a ajudou foi o único que nunca fou ajudado.

Eu também sou a favor da continuação.

Cristina Torrão said...

Sim, também gostei, pede continuação. Só dois reparos e não me leve a mal, pois isto de escrever é também evoluir, de cada vez, um pouco melhor.
Primeiro: quando surge o carro de portas abertas, não é claro se o homem e a rapariga estão dentro ou fora dele, depois ela surge a rastejar pelo chão. Talvez fosse melhor esclarecer a cena desde o início.
Segundo: mesmo que o João não saiba de que é que o homem a acusa, talvez fosse melhor referir palavras que o homem grite. Dava mais realismo à cena.

Parabéns! Continue assim!

mz said...

Uma história de vidas de uma sociedade em decadência em que a violência começa a dar sinais de crescimento.
Não importa a idade mas, apenas o acto.

Também acho que devias de dar continuidade.
Uma parte II?

beijinho

Tulipa Negra said...

Impressionou-me a indiferença da vizinhança perante uma cena tão violenta e um pedido de ajuda. Mas de facto a sociedade actual é cada vez mais individualista.
Também fiquei curiosa por saber o que vai acontecer ao João.
Beijinhos

Fê blue bird said...

Também concordo que esta história merece continuação :-)
Bjos

Fran Carneiro said...

Impressinou-me também!
E, sinceramente, acho que este é só o começo de uma história.

Voto pela parte 2 como todos os outros!

Poetic Girl said...

Louise: Hmmm até tinha pensado no que se ia passar a seguir. bjs

Poetic Girl said...

Chica: Obrigada, o tema até não me inspirava muito! bjs

Poetic Girl said...

Ginger: Vou pensar na parte II... bjs

Poetic Girl said...

Ricardo: Estou a ver que gostaram da história do João... vamos ver que me ocorre. bjs

Poetic Girl said...

Sandra: Obrigada! bjs

Poetic Girl said...

Vera: É às vezes as pessoas que mais precisam são as que são capazes de gestos mais nobres. bjs

Poetic Girl said...

Kássia: Obrigada pela tua opinião e pelos teus reparos. Assim se cresce como escritor com boas críticas. obrigada

Poetic Girl said...

MZ: Também tu? Vou pensar na parte II prometo! bjs

Poetic Girl said...

Tulipa: Esta indiferença acontece mais do que a gente pensa! bjs

Poetic Girl said...

Fê: E vamos continuar, vem aí uma parte II, vou pensar com carinho. bjs

Poetic Girl said...

Franc.ciellen: Vai ter parte II sim... obrigada

A todos obrigada pelo apoio!

By Me said...

O JOÃO AO COLOCAR A SUA VIDA EM RISCO GANHOU UMA AMIGA...

CONTUDO,MUITAS VEZES A PASSIVIDADE,O MARASMO DE QUEM ASSISTE É MAIS MORTÍFERO DO QUE A ARMA QUE DISPARA...FELIZMENTE QUE ACABOU BEM!!!
BJS

blue said...

Já conhecia a tua escrita, de uma participação no Shiuuuu. Agora, com a Fábrica de Letras, vou com certeza acompanhar :)

Cristina Torrão said...

Ainda bem que aceitas as críticas, ou digamos melhor, a minha opinião (quem sou eu para criticar a tua escrita). Confesso que fiquei com algum peso na consciência, pois há quem reaja mal a coisas deste tipo. Mas se realmente admites que "assim se cresce como escritor", vais no bom caminho :)
bjs

Poetic Girl said...

Pedras Nuas: É o João foi corajoso, mas quantos de nós o seríamos? bjs

Poetic Girl said...

Blue: Bem vinda! Obrigada fiquei lisonjeada! bjs

Poetic Girl said...

Kássia: Lido bem com as criticas sim, aliás para mim é importante ter o feedback desse lado, só assim consigo melhorar e quiça um dia chegar aonde sonho? bjs

meldevespas said...

Duas almas perdidas, sem rumo...terão encontrado o caminho, juntos?
Podias contar-nos, não achas?
Beijocas