Friday, June 25, 2010

Momento: a duas vozes (parte XXIV)

ELA

O trabalho acabou por me absorver por completo. Nele canalizei todas as minhas forças, todo o meu ser. Os meus dias de trabalho eram longos, bem longos, por mais de doze horas exercia a função que me tinha sido destinada. Miguel trabalhava tão ou mais que eu. Havia dias que nem nos cruzávamos em casa, trocando meras palavras durante o dia. Ambos tínhamos a nosso cargo uma grande responsabilidade, eu sentia-me ainda mais obrigada a sair vencedora para não frustrar as expectativas que tinham sobre mim.
Aproveitávamos o fim de semana para conhecer a cidade, passear, jantar fora. Ele acabou se revelando uma boa companhia. A sua presença não tinha qualquer efeito em mim, olhava para ele e não o via como homem, era um bom amigo acima de tudo, meu superior hierárquico por outro lado.
Continuava a pensar em Helder, a respirar Helder. Não mais tivera noticias dele. Pensava muitas vezes onde estaria, que estaria a fazer, se pensaria em mim. Estranhava o silêncio. Mas a verdade é que não conseguia reunir coragem suficiente para pegar no telefone, havia sempre alguma coisa que me impelia a não fazê-lo. A angústia essa andava sempre latente dentro de mim, uma sensação de asfixia, de viver sem estar vivendo. Por vezes se não fosse a insistência de Miguel haveria com certeza muitos fins de semana que nem sairia do quarto. Deixava-me levar pela sua alegria, jovialidade. A verdade é que eu precisava dele para me distrair, para me esquecer do que havia deixado para trás. Tenho consciência que o estava a usar, para preencher um vazio, para me distrair da minha dor. Simplesmente não o conseguia evitar, era mais forte que eu.
Sempre fui uma pessoa que tem necessidade de estar acompanhada, a solidão faz-me mal, a sensação que o meu tempo é desperdiçado aterroriza-me. Os únicos momentos em que concebia e concebo estar só é quando estou concentrada numa leitura, caso contrário tenho que ter gente por perto. Este medo da solidão vem de desde muito nova. Apesar de ser filha única, cresci rodeada de gente. Cresci na quinta do meu avô, meus pais viajavam constantemente, deixando-me por tempos indeterminados ao cargo dos avós. Meu avô era um criador de cavalos, pessoa generosa, amiga dos animais e das gentes. Com ele aprendi os valores essenciais para crescer consciente dos meus actos, com ele aprendi a amar os animais, com ele aprendi o que era o Amor. Sendo neta primogénita era a preferida dele, a que ele escolhia para sentar no seu colo quando me contava histórias dos seus tempos de adolescente. Era a única que nutria o mesmo amor pela natureza, a única que o acompanhava nas lides. Tenho memórias de mim, meio palmo de gente, calçada com botas de montar demasiado grandes para mim, carregando os baldes com a ração dos animais. Que doces memórias essas.
Meu avô não gostava do meu Pai. O meu Pai não tolerava o meu avô. E a minha mãe, a minha mãe não era capaz de tomar um partido. Dividia-se entre os dois, evitando ao máximo que eles passassem mais do que o tempo necessário juntos. Daí as constantes viagens sem mim. E eu cresci a amar mais o meu avô do que o meu próprio pai. A sua presença aterrorizava-me, meu semblante sempre ficava mais carregado na sua presença. Conforme fui crescendo, o tempo que passava em companhia do meu avô era superior ao tempo que passava com meu pai. A quinta localizava-se no Norte Transmontano, longe da cidade onde sempre vivemos. Como os meus pais me começaram a deixar ficar por tempos inderteminados, meu avô obrigou a minha mãe a inscrever-me lá na escola. E foi ali que passei a minha infância, naquela terra maravilhosa, rodeada de montes e vales. Com a morte do meu avô, veio a obrigatoriedade de regressar à cidade. Tinha eu 12 anos, idade em que já era difícil me conseguirem voltar a moldar, foi aí que começaram os problemas com o meu Pai. Ele não entendia porque eu não lhe obedecia, eu gritava que o destestava, que queria fugir de casa. As alturas em que ele estava em casa, eram terríveis para mim. Não havia forma de entendimento entre nós. Viver naquela casa era um inferno. Os melhores momentos eram os passados sozinha com a minha mãe, em que nos agarrávamos as duas sozinhas a chorar, ela com medo de tomar uma atitude, eu de saber que estavamos ambas condenadas a viver num inferno. Felizmente a profissão do meu Pai obrigava-o a passar vários meses fora de casa, servindo isso como meio de aproximação entre mim e a minha mãe. Aos poucos fomos construindo uma amizade que nos tinha sido roubada, soube por ela que sofria todos os dias com a nossa separação. Questionei-a porque me deixou aos cuidados do meu avô. E ela respondeu-me da forma mais sincera possível que não queria que eu vivesse num inferno. Nunca consegui entender porque ela não deixou o meu Pai mais cedo. O que a levou a aguentar anos e anos de maus tratos. Nem me cabe agora julgá-la. Não estaria ela agora a sofrer as consequências de tudo o que "engoliu" durante anos e anos? O nosso terror apenas terminou quando o meu Pai reconstruiu outra família, deixando-nos entregues a nós mesmas. Retirando-nos o pouco que tínhamos. De um dia para o outro vimo-nos ambas no meio da rua, sem lugar para viver. Agora já não havia avô para onde fugir. Agora já não havia quinta no Nordeste Transmonstano. Agora já não havia família mais nenhuma, separados pela inveja, pelas partilhas que sempre acabam separando as pessoas, terrível ganância que transformas as gentes.
Uma vizinha acolheu-nos por alguns dias. Conseguimos arranjar uma instituição que nos acolheu e onde passamos a viver as duas. Eu cresci dentro daquelas paredes, ajudando a minha mãe nas tarefas que lhe era destinadas em troca de comida. Foram tempo difíceis, mas felizes! Até a doença da minha mãe começar a dar os seus primeiros sinais, no inicio parecendo que era apenas uma simples tristeza, desmotivação, mas que se veio a revelar nunca mais passar. Foi assim que começaram os tratamentos, internamentos, até chegar à situação actual. Eu agarrando-me às forças que tinha, fui fazer a única coisa que podia fazer, trabalhar, estudar. Foram anos e anos de sacrifício, de luta, para chegar onde estava hoje.

Da janela deste quarto ao olhar para a rua movimentada lá em baixo, senti o coração apertado de saudades da minha Mãe.

Autoria: Lcarmo (Bela)
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P.S. Não se esqueçam do desafio que lancei neste post
TEMA: Poesia
Prazo das participações: Todo o mês de Junho
Enviar para : justmepoeticgirl@gmail.com
Resultados serão anunciados a 17 de Julho

3 comments:

Pat said...

querida enviei te um convite para este teu gmail. quando aceitares e vires o blog, vais entender.

segue e diz me qlqr coisa.

obrigada :)

Libelinha☆ said...

A vida ás vezes é mesmo madrasta!...

Beijinhos ;P

Brown Eyes said...

Bela o facto de ela ser pouco decidida vai trazer-lhe problemas, não? Almoçar, passear...Não concordo. Penso que antes só que mal acompanhada. Imagina o que pensará o Helder de tudo isto. Eu teria-lhe-is já ligado. Quem ama não deixa andar, se deixa é porque não tem a certeza do seu sentimento.
Beijinhos