Sunday, August 1, 2010

A última Viagem

 
 
Mais uma longa viagem. Mais dois dias em viagem da sua vida. Até quando iria viver mais entre as nuvens que com os pés na terra? Dobrou cuidadosamente a roupa enquanto a colocava na mala. Estava cansada dos voos intermináveis, das escalas constantes, do adormecer numa cidade e acordar noutra totalmente diferente. Estava a perder o crescimentos dos seus filhos, estava a perder o envelhecimento do seu marido.
Esta era a sua profissão, a sua carreia, o seu sonho? Mas quanto lhe estava a custar isto tudo? Viver a maior parte dos dias afastada de quem amava? Tinha sido aliciante nos seus tempos de solteira, em que viajar ainda a conseguia surpreender, em que vibrava com a chegada a uma cidade diferente. Agora todas essas emoções se evaporaram, deram lugar à angústia de ter que deixar os seus amores sem certezas do retorno. Já não se sentia segura na profissão, o medo de não ver crescer os seus meninos, não estar ao lado do marido a faziam estar mais consciente ainda dos riscos que corria diariamente. Valeria a pena?
Caminhou descalça até ao quarto das crianças, estas dormiam sossegadas. Beijou-os ternamente, ficando a olhá-los dormir. Dormiam descansados, ignorantes da angústia que toldava o coração da mãe. Uma profissão que lhe permitia dar-lhes tudo o que era material, mas os fazia ficarem privados da única coisa que mais lhes fazia falta: o seu amor. Agradecia o marido compreensivo e dedicado que tinha. Ele era pai, ele era mãe. Havia meses em que ela estava constantemente ausente. Pensou ironicamente que muitas mulheres se queixam da ausência dos maridos, neste caso era ela a ausente. Ainda tinha bem fresco na sua memória o último Natal que ficara retida num aeroporto em New York, sem possibilidades de retorno devido às más condições climatéricas, o que chorara naquela noite. O quanto eles deste lado do oceano a tentaram animar pela chamada de video-conferência, mesmo longe foi-lhe possível assistir ao momento de abertura dos presentes.
Retornou ao seu quarto para buscar a mala. Ficou olhando seu marido que dormia sossegado. Sentou-se na berma da cama. Não queria mesmo ir. Olhou para o telemóvel, e se ligasse a dizer que se sentia indisposta? E se não fosse? Hesitou uma vez, outra vez. Viu os minutos no visor a passarem cada vez mais rápido. Aproximava-se cada vez mais a hora de partida. Encostou seus lábios no seu marido, beijando-o levemente. Vestiu o casaco, pegou na mala, estava pronta para sair.
Sentiu o telemóvel a vibrar no bolso. Olhou para o visor, era da companhia.
- Helena, já vens a caminho? - perguntou a operadora
- Não ainda estou em casa, ia sair agora.
- Houve um problema a nível das escalas de serviço, afinal não estás destacada para viajares hoje. Desculpa o transtorno mas houve um lapso no sistema.
- Ah... bem nem sabes como fico feliz com essa noticia, estava a custar-me imenso sair de casa hoje.
- Já não precisas. Volta para a cama, agora só entras a serviço próxima terça feira. Até  lá!
Desligou. Sentia-se deveras aliviada. Despiu-se e enfiou-se na cama ao lado do marido. Adormeceu.
No dia seguinte seu marido acordou-a bruscamente.
- Helena acorda! - chamou-a
- Hmmm? Que se passa? - perguntou ensonada
- Não ias fazer o voo para os estados Unidos?
- Sim ia mas ligaram-me a dizer que tinha sido engano nas escalas e eu não estava destacada.
- Acabei de ver nas noticias, houve um acidente. Várias mortes... - seu marido olhava-a emocionado
- O voo? O meu voo? - perguntou enquanto uma sensação de pânico a invadia
- Sim querida, sim! Quis o destino que não estivesses lá dentro, sabe-se lá o que te podia ter acontecido.
- Meu Deus! - começou a tremer involuntariamente. Estava em choque! Lembrou-se da sua angústia na noite anterior, lembrou-se do seu receio em ir. Lembrou-se do alívio que sentira por não estar destacada.
Deixou que seu marido a tomasse nos seus braços, enquanto chorava. Chorava pela ironia do destino que a poupara a uma eminente morte, mas colocara outra pessoa em seu lugar. Pensou na crueldade em que põe e dispõe de vidas, que não passámos todos de bonecos à disposição do destino....

Autoria: Lcarmo (Bela)
Desafio Fábrica de Letras
Tema: UMA LONGA VIAGEM

21 comments:

Catarina Duarte said...

Gostei muito!
Beijo

meldevespas said...

Muito emotivo. Cada vida é uma grande viagem.
Beijinho

Eduardina said...

Gostei. Muito bem urdida esta intriga.
Constantemente somos confrontados com "coisas" inexplicáveis.
Um beijinho.

chica said...

Muito bom!beijos,chica e linda semana!

Ricardo Fabião said...

Havia decerto uma outra viagem destacada para nossa protagonista aqui: continuar entre os que dividem esse destino de viver.
Oportunidade riquíssima de se fazer uma reflexão sobre a viagem de cá. Intensificar os laços mais ao peito; destampar velhas mágoas.
Ela tem essa chance.

Emocionante, Poetic.
Profundamente reflexivo.

Beijos.
Ricardo

Sandra said...

Nossas viagens...sempre nossas viagens..
Uma longa e bela viagem. além de ser um pouquinho Longa não é mesmo. Nossas viagem de diversas maneiras. Também estou participando. Interação de amigos juntos nessa longa viagem.
http://sandrarandrade7.blogspot.com/
Um grande abraço,
sandra

O mundo tem suas diversas maneiras de viajarmos.
Vamos nessa..
Carinhosamente,
Sandra

Sandra said...

obaaaa!!!!fechamos os 50...que bom. venha compartilhar . se gostar será minha seguidora. fica o convite.
sandra

Paula noguerra said...

A força da vida tem muito que se lhe diga... LINDO!
Os meus Parabens!

Beijinhos doces***

Louise said...

Às vezes ignoramos o que o nosso instinto mais básico nos diz... e quase sempre é ele que tem razão.
Apesar da metáfora, acredito que se ouvissemos mais aquilo que o nosso sexto sentido nos diz... seriamos mais felizes e mais bem sucedidos.

A.S. said...

A vida sempre nos surpreende!

Beijo
AL

Anonymous said...

Tá maravilhoso :b

- Gostei muito (;

Poetic Girl said...

Catarina Duarte: Obrigada!

Mel de Vespas: Sem dúvida, cada um tem a sua viagem!

Eduardina: É acho que me lembrei do quanto a nossa vida está sempre em jogo, bjs

Poetic Girl said...

Chica: Obrigada!

Ricardo: Pretendi mesmo que fosse como uma reflexão sobre a vida, bjs

Poetic Girl said...

Sandra: Obrigada

Paula: Será o destino? bjs

Louise: É às vezes ignoramos o instinto mesmo! bjs

Poetic Girl said...

A.S.: É verdade, sempre a surpreender! bjs

Poetic Girl said...

Missy Charletton: Obrigada! O teu também estava fantástico! bjs

Brown Eyes said...

Bela eu acredito no destino e se tiver que ser não temos como fugir. Excelente esta tua história, como sempre. Beijinhos

Anonymous said...

Como diria a minha Mãe, não tinha chegado a hora dela. Boa história.

Poetic Girl said...

Brown Eyes: às vezes há quem escape o destino, tal como a heroína... bjs

Carlos: Sim a hora dela não era certamente aquela! bjs

Catsone said...

Poetic, esta moça deixou o emprego, não?
Muito bom!

mz said...

O destino dela não era uma viagem, mas sim a sorte de a não fazer!

bj