Monday, February 1, 2010

Velhice


"Sentada no sofá mostrava um ar ausente. Á sua volta os familiares falavam entre si, sussurravam para que não se apercebesse da gravidade da situação. Mas ela sabia, ela sentia que algo de muito grave se passava. Suspirou. Suas mãos enrrugadas seguravam a manta que lhe cobria as pernas. Há vários dias que sentia a sua ausência, quer no sofá, quer no leito que dividiam á noite. Perguntou a um dos filhos por ele, obteve uma resposta evasiva, um olhar que se esquivou ao seu. Suspirou. Que mania os mais jovens tinham de tentar proteger os mais velhos da dor. Sabia que mais dia menos dia ia - se ver privada daquela presença constante na sua vida. A doença roubava um bocadinho dele todos os dias. Havia dias em que ele nem a reconhecia. Chamava-lhe de mãe, depois aninhava-se no seu colo, tal qual uma criança que procura do calor materno. Não se importava que ele voltasse a ser menino. Não se importava que ele por vezes não se lembrasse dela. Bastava-lhe aquela presença o seu lado. Seu olhar divagou pela sala, pousando nos retratos de momentos felizes. Sorriu para si mesma. Tinha sido uma vida em pleno não tinha? Tinham trilhado juntos um caminho que sempre os manteve juntos. Os momentos de juventude caracterizados pelo amor incompreendido pela família, que lhe perguntavam o que ela tinha visto nele. E que tinha visto ela nele, para o escolher para dividir a sua vida? Tinha visto o brilho do olhar forte e decidido; as atitudes de coragem em querer lutar contra tudo e contra todos; tinha sentido o seu toque na sua pele, aquele momento especial de entrega, que marcou o inicio de uma vida a dois... não seriam motivos mais que suficientes? Nem tudo tinha sido rosas, a vida tinha sido cruel, dado com uma mão retirado com a outra, oferecendo-lhe em contra partida uma presença por mais de seis décadas. Era muitos dias, muitas horas juntos, muitas histórias para recordar, contar, lamentar e também esquecer. Sabia que o estava a perder. Que agora sim era o final. Ele que sempre havia dito que queria morrer primeiro para não ter que passar pela dor de a perder. O seu desejo tinha sido concedido. A vida estava a esgotar-se para ele. Com a mão ajeitou seu cabelo que se soltou provocando-lhe cócegas no nariz. Brevemente seria a sua vez também. Porque a vida até os podia separar agora, mas com certeza não seria por muito tempo. As forças já escasseavam, a vista essa já lhe pregava partidas, a sua debilidade física ia-se notando dia a dia. Se até aqui a presença dele era um motivo para ainda querer viver um pouco mais, agora com a eminente partida dele nada a prendia cá. Os filhos esses iriam sofrer no inicio, mas a roda da vida era assim mesmo. Teria que partir para dar o seu lugar a outros. Restava a consolação de ter sido uma vida muito bem vivida, que é muito mais do que a maior parte das pessoas alcança. Seria paciente. Afinal não podia ir a lado nenhum. Olhou para a TV, distinguindo apenas ligeiras formas. Sentiu uma presença ao seu lado.
- Sou eu avó - disse a sua neta mais nova
- O teu avô não está nada bem pois não? - perguntou enquanto segurava sua mão na sua.
- Avozinha....
- Não me mintas Marta - olhou para a neta com convicção
- Avozinha, o avô fechou hoje os olhos.
Sentiu um aperto súbito no peito. Durou cerca de alguns segundos, depois respirou fundo resignada. Uma lágrima escorreu - lhe pela face. Sua neta deu - lhe um abraço.
- Lamento avozinha.
- Não lamentes querida. O teu avô teve uma vida feliz, nunca devemos esquecer isso. E olha que poucos chegam á nossa idade juntos, digo-te eu, que já vi muitos antes de nós partirem. Podemo-nos considerar uns felizardos por nos ter sido permitido a companhia um do outro até hoje. Hoje e agora dói. Amanhã doerá menos. É assim que a dor se instala dentro de nós, primeiro impacto é forte, mas depois vai-se desvanecendo no tempo. E eu não viverei muito mais.
Ficaram ambas em silêncio contemplando pontos diferentes da sala. A avó com os pensamentos no seu amado. A neta consciente de que os seus avós tinham sido uns priviligiados. Poucos chegam àquela idade na companhia um do outro. A velhice vai-nos roubando a lucidez, a força física, mas reforça os sentimentos que moram cá dentro. Bela"

Minha contribuição para o desafio deste mês da Fábrica de Letras
Foto retirada do site: corbis.com

13 comments:

salgados said...

Deixei um Oi! para você, lá no meu blogue, viu?!

Fábrica de Letras said...
This comment has been removed by the author.
Anonymous said...

Poucas vidas acabam assim com tanta serenidade.

Su m said...

"Restava a consolação de ter sido uma vida muito bem vivida, que é muito mais do que a maior parte das pessoas alcança"

Sem dúvida nenhuma!

Gostei muito.

Brown Eyes said...

Bela já conheço a qualidade do teu trabalho e, mais uma vez, demonstraste que fácilmente traças uma história. Infelizmente alguém ficará sozinho, vivem uma vida juntos mas partem sozinhos, o que deixa o companheiro como que ampoutado. Beijinhos

By Me said...

O CICLO DA VIDA COMPLETA-SE...UM DIA TERÁ DE SER, POR MAIS QUE CUSTE

BELO CONTO...

meldevespas said...

Poucas vezes a morte é encarada com essa frontalidade, focamo-nos sempre na dor da partida. Os meus pais viveram juntos, felizes. lutaram lado a lado pela familia que construiram, por 54 anos, e o consolo que resta ao meu pai é esse mesmo, que foi muito bom, foi muito mais do que a maior parte de nós pode aspirar a ter. Os meus avós paternos partiram com diferença de 24 horas um do outro, depois de 60 anos juntos.
Muito belo este teu conto. Beijinhos

Eva Gonçalves said...

É verdade que temos tendência para proteger os idosos da morte dos outros... quando na realidade, muitas vezes, eles encaram com uma maior naturalidade do que nós, a sua perda, principalmente se tiveram uma vida plena e cheia de felicidade conjunta. :) Gosto da forma como escreves e já adicionei os teus blogues :) Beijinhos

Poetic Girl said...

Salgados: nem comento

Anonymous: É poucas vidas mesmo. Gostava que a minha terminasse assim...

Su: obrigada!

Brown eyes: sem dúvida parece que se fica amputado mesmo... bjs

Pedras nuas: sim é um final prevísivel para algumas partes... e quem fica, fica sózinho...

Mel de vespas: casais como dos teus avós e os do meu conto são cada vez mais raros. Esta semana faleceu um vizinho meu que também estavam casados para mais de 60 anos... uma raridade... bjs

Eva: Bem vinda! É como dizes se a vida fôr plena o resto vem naturalmente... bjs

Lala said...

Fantástico e tão real. Hoje em dia é bem verdade que tentmos sempre proteger as pessoas da dor. As crianças, pela inocência. Os idosos porque já passaram tanto. É um erro que insistimos em cometer. Inconsciêntemente e ao mesmo tempo instintivamente, achamos sempre que não serão capazes de aguentar, ou superar! Grande erro. A dor de uma perda (neste caso) é certa... mais cedo ou mais tarde!
As crianças sabem vê-la com inocência e os idosos com sabedoria. Ainda que sofram!

Parabéns pelo teu conto!

Beijinho*

Helga Piçarra said...

Nem sei que palavras usar neste momento... estou muda de emoção. Já fui a Marta a dada altura da minha vida, quando perdi o meu querido avô materno. A minha avó tem hoje 95 anos e ainda hoje os seus olhos brilham quando fala dele, mas por outro lado escurecem pela saudade.

A morte é a única certeza que temos nesta vida, talvez por isso seja tão doloroso, quando em consciência ficamos mais próximos dela.

Beijinho

Poetic Girl said...

Lala: Obrigada! É mesmo como tu dizes na tua ultima frase, resume muito bem o que quis transmitir... bjs

Helga: Acho que de certa forma a maior parte de nós já fomos martas, fui uma marta quando o meu pai faleceu. É duro, mas vai-se superando, uns melhor que os outros claro! bjs

Ginger said...

O que mais me assusta não é a morte, mas sim a consciência naquele momento de que vou morrer dentro de pouco.
Acho que sem paz esse derradeiro momento será brutalidade inimaginável.



bjs*